1. Sendo a Justiça a base da sociedade (Aristóteles), não é de estranhar que seja objecto de permanente atenção pela comunicação social, que lhe dedica parte substancial do seu tempo e espaço.

Não obstante os 38 anos de democracia e de liberdade de expressão, não foi ainda possível alcançar um relacionamento equilibrado e saudável entre a Justiça e a Comunicação Social, que permita a ambas o desempenho adequado das suas funções, essenciais que são as duas num Estado de Direito democrático.

Um conjunto recorrente de problemas vem impedindo que a liberdade de expressão efectivamente sirva para oferecer a todos os cidadãos informações precisas, correctas e tempestivas sobre o funcionamento do sistema judicial. A Justiça e os órgãos de comunicação social continuam a não saber comunicar e compreender-se entre si, sendo a informação que chega ao cidadão o resultado desse desentendimento.

Repetem-se casos de notícias erradas sobre a Justiça, que muito contribuem para a sua descredibilização junto da opinião pública, assim enfraquecendo um dos pilares da sua legitimidade (os tribunais administram a justiça em nome do povo – artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Assiste-se diariamente à menorização do que é feito em Portugal, apresentando-se como bons exemplos países onde a justiça funciona bem pior do que em Portugal.

É ainda evidente a constante pressão da comunicação social para obter informações sobre processos em segredo de justiça, pois são esses que mais interessam a opinião pública. Este facto é agravado pela circunstância de, nos últimos tempos, ter existido, por parte dos titulares de cargos políticos, um claro refúgio no processo penal e no princípio de presunção de inocência que este consagra, pretendendo reconduzir a este âmbito toda sua responsabilidade. Uma verdadeira “presunção de inocência política” fundada na presunção de inocência penal. Pretendem com isso afastar qualquer sancionamento político enquanto não estiver determinada, por decisão transitada em julgado, a sua responsabilidade jurídico-penal. Não podendo nunca os tempos da justiça ser tão rápidos quanto os da política, este “refúgio político” na “inocência penal” transfere para o plano judicial um debate apressado que deveria existir no campo político.

2. A Recomendação (2003) 13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa respeitante à prestação de informação relativa a processos criminais através dos media formulou um conjunto de princípios ainda plenamente válidos, mas em Portugal muito esquecidos. Recordam-se os seguintes:

  • O público deve poder receber informação sobre as actividades das autoridades judiciárias e das polícias através dos media, pelo que os jornalistas devem poder livremente noticiar e comentar o funcionamento do sistema de justiça criminal, mas respeitando o princípio da presunção de inocência dos suspeitos e a privacidade destes, das vítimas e das suas famílias;
  • As autoridades judiciárias e as polícias apenas devem fornecer aos media informações verificadas ou que razoavelmente se possam presumir correctas;
  • Quando decidam fornecer tais informações, não devem discriminar órgãos de comunicação social e devem privilegiar os comunicados de imprensa ou as conferências de imprensa;
  • Nos processos criminais de interesse da opinião pública, as autoridades judiciárias e as polícias devem regularmente informar os media dos actos principais, desde que não prejudiquem o segredo das investigações ou as atrasem.

3. O respeito pelo segredo de justiça é aspecto essencial no relacionamento entre a Justiça e a Comunicação Social.

a. É inegável que existem violações do segredo de justiça que afectam a autoridade e a imparcialidade do poder judicial, principalmente a eficácia das investigações, e ofendem a presunção de inocência dos suspeitos ou arguidos.

O primeiro passo para combater a verdadeira (e nesses casos sempre censurável) violação do segredo de justiça é conhecê-la efectivamente.

Este não é um problema generalizado: ocorre pontualmente em meia dúzia de processos que têm a constante atenção da comunicação social e da opinião pública; não nos 750 mil inquéritos que o Ministério Público tramita anualmente. Quem afirma que é este o principal problema da justiça portuguesa revela que pouco ou nada conhece de ambos; revela que, mais do que resolver o problema, quer mantê-lo e com isso manter constante uma arma de arremesso contra o judiciário e, principalmente, contra o Ministério Público.

Há que lembrar que hoje, mesmo durante o inquérito, a regra é a da publicidade do processo: só há segredo de justiça quando o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução, ou quando o próprio juiz de instrução o determine a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais. A generalidade dos inquéritos não está assim em segredo de justiça, é pública (ainda que esta publicidade não contemple a possibilidade de assistência aos actos processuais).

Por outro lado, não há proibição de divulgação dos factos objecto dos processos, mas apenas dos actos processuais. Por isso, em muitos casos que se apontam publicamente não houve qualquer violação. Desde logo, em alguns deles nem sequer havia segredo de justiça; noutros, o que houve foi apenas legítima investigação jornalística autónoma sobre o facto objecto da investigação criminal.

b. O confronto entre o segredo de justiça, por um lado, e a liberdade de expressão, nas vertentes de direito de informar, de se informar e de ser informado sem impedimentos nem discriminações, por outro, ambos com tutela constitucional, obriga a uma compressão recíproca.

Assim, quer a Constituição, quer a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (à luz das quais devem o Código de Processo Penal e o Código Penal ser interpretados) impedem a punição penal da divulgação de acto processual, ainda que formalmente sujeito a segredo de justiça, se a mesma não constituir ofensa ao bom nome, à reputação e à reserva da intimidade da vida privada dos participantes processuais visados, por um lado, nem afectar a autoridade e a imparcialidade do poder judicial, v.g., a eficácia das investigação ou a integridade probatória, por outro.

É especialmente importante saber que, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado, a violação da presunção de inocência ou a ofensa ao bom nome e reputação têm de ser algo mais do que o mero dar conhecimento de que a pessoa é suspeita ou arguida num processo. Se assim fosse, o segredo de justiça teria de existir em todos os processos e em todas as fases do mesmo, até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, único momento em que cessa tal presunção, e é sabido que ele só existe no inquérito.

Entendimentos demasiado amplos sobre o segredo de justiça, e por isso compressores da liberdade de expressão, têm conduzido a diversas condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

c. Outra verdade inquestionável que todos os comentadores recusam admitir: mesmo que tal constitua crime, é quase impossível descobrir a identidade daquele que, tendo contacto com o processo, revelou a terceiro acto processual em segredo de justiça.

Na verdade, desde logo, o leque de potenciais suspeitos é sempre amplo, pois muitas pessoas têm contacto com o processo e conhecem todos ou muitos dos seus actos, sem que o Ministério Público o possa impedir: funcionários judiciais, órgãos de polícia criminal, peritos e outros técnicos, juízes de instrução, juízes dos Tribunais da Relação, advogados, assistentes e também os próprios arguidos, para não falarmos da crónica insegurança que afecta as bases de dados dos sistemas informáticos da Justiça. Por outro lado, os jornalistas não estão e não devem estar obrigados a revelar a fonte (sob pena de se colocar em causa a própria existência de jornalismo independente, essencial à liberdade de informar e de ser informado), e, sendo também suspeitos da prática do crime, têm, como não podia deixar de ser, o direito a não prestarem quaisquer declarações.

Assim, normalmente haverá duas pessoas que conhecem a identidade de quem, tendo conhecimento do processo em segredo, divulgou acto processual: o próprio e o terceiro que recebeu a informação. Só será possível descobrir a identidade do primeiro se qualquer dos dois confessar os factos. Não se vê como obrigar a tal confissão e, assim, que interesse terá qualquer um deles para o fazer.

d. Por regra, é o Ministério Público quem mais tem a perder com a verdadeira violação do segredo de justiça: o sucesso da investigação poderá ficar comprometido pelo facto de a mesma ser publicamente conhecida, nomeadamente pela consequente inutilidade de posterior produção de alguns meios de obtenção de prova, como buscas e intercepções telefónicas.

e. Cegos a estas evidências, não são poucos os que publicamente vêm defendendo que, sendo o Ministério Público o titular do inquérito, é sempre dele a responsabilidade pela violação. Esta verdadeira teoria da responsabilidade penal objectiva, que deveria envergonhar qualquer jurista, já foi publicamente defendida por jornalistas, advogados, professores de direito e até juízes.

Outros, cobardemente insinuam conspirações internas no Ministério Público, algumas delas envolvendo o SMMP.

Demonstra isto que o que verdadeiramente querem não é combater o problema, antes é perpetuá-lo para poderem manter a sua argumentação demagógica; querem apenas atacar o Ministério Público, descredibilizando-o e, com isso, o seu trabalho.

f. O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, nomeadamente os jornalistas, pelo que qualquer deles pode cometer o crime de violação desse segredo. Assim, a conduta dos órgãos de comunicação social que violam o segredo de justiça deve merecer crítica pública e tal raramente tem sucedido. A desculpabilização interna e a complacência externa têm permitido o agravamento do problema.

4. Há que reconhecer todos os problemas expostos e trabalhar para os superar, apostando num novo tipo de relacionamento entre o judiciário (magistrados, advogados, funcionários judiciais e órgãos de polícia criminal) e a comunicação social, que, por um lado, torne mais transparente e perceptível a todos os cidadãos o funcionamento do primeiro, mas, por outro, preserve o segredo de justiça quando deve ser preservado.

O Ministério Público tem de assumir a necessidade de ter uma verdadeira política de comunicação, que, de forma activa e transparente, no âmbito criminal forneça as informações que é possível fornecer sem ofender o bom nome, reputação ou reserva da intimidade da vida privada de qualquer dos participantes processuais, por um lado, nem afectar a eficácia das investigação ou a integridade probatória, por outro, e, nas suas demais áreas de intervenção, dê a conhecer o seu trabalho e resultados obtidos. O mesmo se diga em relação ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

5. O SMMP irá promover a realização, ainda durante 2013, de um Congresso de “Justiça e Comunicação Social” aberto a magistrados, advogados, jornalistas, polícias e quaisquer interessados, visando debater o assunto e a assunção de um conjunto de princípios éticos e deontológicos comuns a todas as partes.

O SMMP estará sempre na primeira linha para a dignificação dos tribunais e para melhorar o sistema de justiça como núcleo central de um Estado de Direito democrático.

29 de Novembro de 2012

A Direcção do SMMP

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