Apresentação

A necessidade de elaboração e apresentação do presente projecto/reflexão sobre o Estatuto da magistratura do Ministério Público e sua organização foi motivada por duas ordens de factores.

Por um lado, ele resultou da dinâmica criada pelas perplexidades que afectam, em concreto, a actividade dos seus membros, enquanto magistrados e integrantes de uma estrutura hierarquizada.

Por outro lado, derivou das múltiplas interpelações que políticos, órgãos de comunicação social e cidadãos, vêm fazendo a propósito dos poderes, articulação e actuação deste órgão de iniciativa do poder judicial, tal como a Constituição da República Portuguesa o concebeu.

Perplexidades e interpelações que resultam da génese histórica do Ministério Público, da leitura que dele evolutivamente a Constituição tem vindo a consagrar, da delimitação que a Lei Orgânica do Ministério Público, enquanto texto de transição, lhe desenhou e, ainda, da prática, necessariamente contraditória, que tem afirmado o Ministério Público como magistratura autónoma e, por isso, como instrumento fundamental da independência do poder judicial em Portugal.

Nesta perspectiva, este projecto é o resultado e a síntese (elaborada pela Direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público) dos trabalhos de inúmeros Encontros, Colóquios e Assembleias que versaram a realidade portuguesa do Ministério Público, bem como reflexo do estudo de inúmeras experiências estrangeiras e dos problemas que elas motivam nos respectivos países.

Numa outra perspectiva, este projecto só foi possível devido a uma forte dinâmica interna, baseada numa consciência crítica e não corporativa, mas antes alicerçada na maturidade profissional e cívica que o Ministério Público, enquanto magistratura, alcançou já, em Portugal.

Ela é também, diga-se em abono da verdade, o resultado da abertura reflexiva que o actual Procurador-Geral da República tem permitido e incentivado.

Neste sentido, o projecto insere-se, necessariamene, na perspectiva mais moderna de compreender a discussão dos estatutos e a organização das magistraturas e do poder judicial, como elemento fundamental do sistema garantístico de uma sociedade democrática.

Na verdade, não é possível já e agora conceber um sistema garantístico global, limitado ao binómio garantias susbtantivas/garantias adjectivas, sem ter em conta, necessariamente, as garantias do exercício, controlo e visibilidade do estatuto dos seus operadores directos.

O método por que se optou não concebeu, no entanto, este projecto como síntese final da reflexão iniciada pelo Sindicatos dos Magistrados do Ministério Público, mas, antes, como uma resposta possível, oportuna e urgente para a resolução dos problemas que têm vindo a ser suscitados.

Não é, assim, um texto, acabado, mas antes um contributo para o renovado empenhamento de todos – magistrados, políticos e cidadãos – na discussão do estatuto de uma magistratura que é hoje alvo de um interesse crescente, mas menos profundo do que efectivamente merece.

A difícil aliança entre um estatuto de magistrados que se querem, simultaneamente, obedientes unicamente à lei e à sua consciência, na prossecução de uma actividade imparcial, que visa a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e subordinados a uma estrutura hierárquica, se bem que hoje fundamentada, claramente, em pressupostos diferentes daqueles que serviram originariamente para a conformar, exige, no entanto, um esforço duradouro de coerência e rigor metodológico difíceis de alcançar.

E, no entanto, a reinvenção, em moldes modernos, do modelo tradicional de organização hierárquica da magistratura do Ministério Público pode trazer, face ao incremento de fenómenos de criminalidade organizada a nível nacional e internacional e à necessidade de defesa de interesses de cidadania supraterritoriais, vantagens de coordenação que não devem, irreflectidamente, ser colocadas de parte, perante os tradicionais, mas inevitáveis, modelos atomistas de organização da jurisdição.

É nessa perspectiva que este projecto é, simultaneamente, ousado na descoberta de instrumentos de objectividade e visibilidade e no desenvolvimento de garantias e reflectido e prudente na adequação de fórmulas de eficácia comprovada, na organização de uma magistratura flexível e coordenada, em função dos combates que a democracia moderna tem de travar.

Por isso, a estrutura deste trabalho é dividida em duas partes. De um lado, desenvolvem-se princípios gerais e orientadores, do que pensamos ser o caminho que inevitavelmente haverá algum dia de ser seguido. Do outro apontam-se soluções concretas que, cremos, poderão, desde já, ajudar a transformar a actual Lei Orgânica do Ministério Público, de acordo com os princípios que, abstractamente, antes indicámos.

Não é, também, por acaso que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público escolheu este momento para publicitar esta reflexão.

É que, não sendo, nem tendo sido nunca, uma estrutura partidariamente vinculada, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público não é, contudo, neutro, perante as opções globais da sociedade, na organização do poder, das liberdades e das garantias.

Por isso, face aos propósitos enunciados peloPrograma do actual Governo, propósitos esses, recentemente sublinhados e incentivados no discurso de abertura do ano judicial, pelo Presidente da República, entende o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que é este o momento oportuno para contribuir, com a sua reflexão, para o desenvolvimento dos mecanismos de legitimação e aperfeiçoamento democrático do estatuto do Ministério Público.

A DIRECÇÃO

Metodologia

– A presente proposta/reflexão sobre a revisão do actual Estatuto e lei Organica do Ministério Público foi estruturada de acordo com as matérias em questão, segundo diferentes graus de pormenorização das propostas apresentadas.

– Assim, consiste a mesma de uma primeira Parte, na qual se procurarão explicitar as questões fundamentais que se prendem com a reformulação do actual Estatuto do M.P. enquanto órgão do Estado, no desenvolvimento das normas e princípios da Constituição da República. Versar-se-á assim a matéria das funções, competências e formas de actuação e representação do M.P., enquanto órgão de justiça constitucionalmente regulado; nessa linha, e porque directamente ligado, no entender do S.M.M.P., à própria concepção do M.P. enquanto órgão de Justiça, falar-se-á do Conselho Superior do Ministério Público. Será exposto o entendimento do M.P. quanto aos princípios que devem regular estas matérias, detalhando-se as alterações concretas que, face à regulamentação actual, se entende serem em qualquer caso necessárias para a aplicação de tais princípios.

– Numa segunda parte, expor-se-á a sistematização proposta para um novo Estatuto do M.P. Será de seguida formulada, seguindo as divisões principais dessa sistematização, e tendo em conta o referido na l.ª Parte, uma redacção concreta de normas relativas ao estatuto dos Magistrados do M.P. e à organização do M.P. nos Tribunais.

Proposta de revisão do Estatuto do Ministério Público

Estrutura e Funções – Conselho Superior do M.P.

– O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público entende que o momento presente se presta a uma revisão da actual Lei Orgânica do Ministério Público, dirigida a um aperfeiçoamento do respectivo regime legal, que tenha em conta a evolução legislativa e social verificada nos últimos anos, e, sobretudo, a necessidade de adequar cada vez mais o estatuto e organização desta Magistratura ao cabal desempenho das funções que lhe são cometidas pela Constituição, recolhendo os ensinamentos derivados da experiência de 20 anos de actuação num Estado de direito democrático, e aqueles que podem derivar de um exame atento e crítico das instituições judiciárias dos países que nos são próximos, e das orientações, nesta matéria, das organizações internacionais mais representativas.

– Tal necessidade de revisão vem sendo sentida dentro da magistratura e mesmo por parte dos diversos órgãos e entidades ligados à administração da justiça, conforme resulta de diversos debates e encontros, nomeadamente patrocinados pelo S.M.M.P., tendo vindo de resto a ser defendida, ultimamente, pelas entidades com maiores responsabilidades nesta área da Administração da Justiça.

De um ponto de vista estrutural e organizativo, sente-se sobretudo a necessidade de uma maior transparência e segurança, no que respeita à organização do M.P., ao preenchimento dos diversos lugares, à distribuição de serviço e à progressão na carreira. Sendo hoje aceite e decorrente do entendimento doutrinário comum, aliás fundado nos antecedentes históricos, que o princípio da estabilidade previsto na actual LOMP é equivalente ao tradicional princípio da inamovibilidade, entende-se que deve ser potenciado tal princípio, e que isso pode ser feito sem pôr em causa a necessária flexibilidade da distribuição de serviço, quanto aos lugares nos quais se façam sentir especiais necessidades de coordenação e eficácia da actuação do M.P.

De um ponto de vista funcional, são sobretudo estas necessidades de coordenação e eficácia na actuação do M.P., nomeadamente em processo penal, que se fazem sentir. Mas, ainda aqui, uma maior transparência e responsabilização, nos diversos graus hierárquicos, apenas poderá potenciar a confiança dos operadores judiciários e dos cidadãos em geral, quanto à isenção e objectividade da actuação do M.P.; bem como a eventual crítica, nomeadamente em termos de política criminal, aos modelos de organização que venham a ser criados com base na lei.

– Esta revisão da actual L.O.M.P. deve tomar em conta, como se disse, a necessidade de espelhar adequadamente na lei o figurino constitucional do M.P. como órgão de justiça, pelo que se propõe, em termos de estruturação, epígrafes, e na designação da própria lei, um figurino que alterará a ordem das matérias adoptada nas anteriores redacções. Visar-se-á com isto seguir a sistematização constitucional, o que parece adequado, em termos de sistemática, em relação a um órgão do Estado como o M.P., que vê aí reguladas as bases do seu estatuto.

Será assim proposta uma sistematização que parte das funções constitucionalmente definidas do M.P., e que se centra no estatuto, como magistrados, daqueles a quem cabe exercer na prática tais funções, estatuto essencial à caracterização do M.P. como órgão de justiça, integrado no poder judicial. Isto em termos e por razões paralelas às que presidem à definição do estatuto dos magistrados judiciais, paralelismo aliás tradicional no nosso sistema. Só depois virão as regras sobre organização do M.P., uma vez que estas, embora essenciais à caracterização do M.P., atenta a sua organização hierárquica, são sempre de considerar meramente instrumentais em relação às funções que ao mesmo cabe desempenhar, e de resto contingentes em termos temporais, face à evolução das necessidades e dos desafios sociais, como de resto sucede com a orgânica judiciária em geral.

– Assim, o projecto apresentado terá por base a sistematização adiante exarada, com a designação de Estatuto do Ministério Público.

ESTATUTO DO MINISTÉRIO PUBLICO

Título I

Do Ministério Público

Capítulo I

Estatuto e funções

– Neste campo, e na esteira da teleologia das disposições constitucionais, deverá ser acentuada a natureza essencial de órgão de justiça, vocacionado para actuar integrado nos Tribunais, exclusivamente em defesa de um correcto exercício das funções do poder judicial, que é no nosso sistema a do M.P. Assim, propõe-se que seja expressamente consignado que ao M.P. cabe apenas actuar “nos termos do presente diploma e das leis de processo”, em defesa, além do concretizado na Constituição, “dos interesses postos a seu cargo por lei”; entendendo-se obviamente como tal uma lei que vise regular a organização ou competência dos Tribunais e do Ministério Público, objecto de reserva relativa de competência da A.R., nos termos do art. 168°, n° 1, q), da Constituição.

– Quanto ao elenco de competências do M.P., começa-se por acentuar a necessidade de ser repensada a representação, por parte do M.P., do Estado, enquanto pessoa colectiva de direito privado, ou enquanto Administração Pública. Esta representação é com efeito difícil de conciliar com as inequívocas funções de defesa da legalidade democrática e dos interesses do Estado-colectividade, que são impostas ao M.P. pela Constituição, e que constituem o cerne do conteúdo funcional do M.P.

É que, apesar de não se conceber actualmente que o Estado actue senão dentro da legalidade, existem sempre, necessariamente, vastas áreas de discricionariedade dentro da actuação da Administração, nomeadamente como sujeito de direito privado, não se compreendendo como poderão ser eficaz e coerentemente defendidos nos Tribunais, nessa áreas, os legítimos interesses materiais do Estado, por parte de uma magistratura que está vocacionada para tomar a seu cargo a defesa judiciária de interesses objectivamente derivados da lei, se necessário contra a actuação dos próprios poderes do Estado. Assim, mantendo-se o sistema tradicional entre nós, arrisca-se comprometer, em alternativa, a defesa eficaz das pretensões materiais controvertidas do Estado, ou a imagem de rigorosa objectividade e imparcialidade que deve derivar da actuação da magistratura do Ministério Público, num sistema como o nosso. É sabido aliás que, quanto a direito comparado, alguns dos sistemas que nos são mais próximos, em termos culturais e jurídicos, evitaram ou resolveram este problema de forma definitiva, encontrando soluções alternativas para a defesa em juízo das pretensões materiais do Estado.

Assim, e na esteira do já previsto na lei de revisão do C. P. Civil, propõe-se pelo menos a possibilidade de o Estado nomear mandatário judicial próprio, devendo em qualquer caso as acções a propor pelo M.P., em representação de interesses do Estado, ser precedidas de pedido nesse sentido, efectuado pelo Governo.

– Deve em qualquer caso, por uma questão de transparência e de igualdade no tratamento jurídico e processual de todas as entidades cuja autonomia e personalidade são juridicamente relevantes, deixar de ser confiada ao M.P. a representação em juízo de quaisquer pessoas colectivas de direito público de base institucional, fazendo-se expressa menção a essa não representação e revogando-se todas as normas em contrário. Será quando muito de manter uma intervenção do M.P. a título acessório nos processos em que sejam intervenientes tais pessoas, mas apenas para defesa da legalidade, e como em qualquer outro processo no qual esteja em causa o interesse público.

Nestes termos, propõe-se que seja consagrada, nas disposições finais e transitórias, a expressa revogação da legislação avulsa que confere ao M.P. a representação em juízo destas pessoas colectivas. – Quanto à representação das pessoas colectivas públicas de base territorial, a entender-se mantê-la, deverá ser expressamente referido que tal representação é neste caso equivalente a um patrocínio forense, e que só terá lugar após pedido, feito à P.G.R., pela entidade em questão; sendo que naturalmente, como em qualquer outra das suas intervenções, também aqui o M.P. se deverá reger por critérios de estrita legalidade, objectividade e imparcialidade.

– Na sequência da mais recente revisão da LOMP, deverá ser clarificada a matéria das relações entre o M.P. e os organismos policiais e de segurança. A este respeito, deve referir-se que o exercício de quaisquer funções relacionadas com a prevenção criminal conjuga-se mal, enquanto actividade de índole administrativa, e até com características propriamente políticas, de elevado grau de discricionariedade, com o estatuto actual do M.P., nomeadamente com a total autonomia deste face ao poder político, em matéria de procedimento criminal, e com o princípio da actuação exclusiva segundo critérios de legalidade e objectividade. Deveria assim manter-se apenas, neste campo, o poder de fiscalização da actividade processual dos órgãos de polícia criminal. Mas deveria acrescentar-se, quanto a estes órgãos, e na estrita medida em que desempenhem funções de natureza processual penal, o poder de o M.P. coordenar e controlar a respectiva actividade de investigação criminal, essencial à efectiva direcção de tal investigação. Pôr-se-ia assim de lado um poder relativo à prevenção criminal, estranho às atribuições do M.P. quando exercido fora do processo e, na prática, apenas aparente, a favor de um efectivo poder de direcção da investigação criminal, essencial ao exercício cabal das funções nucleares do M.P.

Assim, mesmo não sendo atendidas todas as implicações decorrentes da exposição que antecede, há pontos diversos que, no entender do S.M.M.P., merecem consagração imediata, e em relação aos quais se fazem as seguintes propostas concretas:

Art. … (Definição)

O Ministério Público é o órgão de justiça ao qual cabe, agindo nos Tribunais e nos termos do presente diploma e das leis de processo, representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses postos por lei a seu cargo.

Art. … (Competência)

1 – Compete especialmente ao Ministério Público:

a) …

b) …

c) …

d) …

e) …

f) …

g) Coordenar superiormente as actividades desenvolvidas pelos diversos órgãos de polícia criminal, no campo da investigação criminal.

h) …

i) …

j) …

l) Fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal, e em geral as actividades de investigação criminal desempenhadas por tais órgãos.

m) …

n) …

Capítulo II

Formas de intervenção

– Neste campo, deveria acentuar-se de forma expressa que o M.P. exerce as suas funções junto dos Tribunais e segundo as leis de processo, ressalvadas as disposições do presente diploma quanto à competência consultiva dos diversos órgãos que integram a Procuradoria Geral da República.

Quanto aos titulares da representação do M.P. nos Tribunais, a actual disposição sobre representação no S.T.J., conjugada com a referência às faculdades de substituição, remete para uma estrutura centralizada do M.P. que, apesar da desejável manutenção de uma organização hierárquica, já não é, juridicamente e na prática, a que enforma a nossa magistratura. Tal disposição, tal como a actual denominação do primeiro grau da carreira (Delegado do Procurador da República), traz consigo a ideia de uma verdadeira delegação de poderes, que não é de modo algum essencial ao actual modelo de organização hierárquica, no qual se deve entender que todos os magistrados, de qualquer grau, têm competência própria para o exercício das funções que lhes são confiadas, nos termos da lei.

Assim, deveria passar-se a referir que o M.P. é representado, nos Tribunais supremos, pelo P.G.R. ou por P.G.A.s. Deveria igualmente eliminar-se a referência expressa aos Tribunais da Relação, pois as atribuições confiadas ao M.P. implicam necessariamente a sua intervenção em quaisquer Tribunais, e não preferencialmente nos judiciais. Propõe-se pois que seja referido apenas que, nos Tribunais de recurso não compreendidos na referência anterior, o M.P. é representado por P.G.A.s.

Anote-se que na proposta formulada não se irá sugerir uma alteração em termos concretamente definidos das designações actualmente vigentes para os magistrados que representem o M.P. na 1.ª instância.

Repete-se que, embora seja desejável a manutenção de divisão funcional, na 1.ª instância, entre magistrados, actualmente designados por Procuradores da República e Delegados do Procurador da República, entende-se que tal divisão não implica o exercício de competência delegada por parte dos magistrados actualmente designados como Delegados, conforme já referido.

Assim, deverá ser definitivamente afastada a denominação em questão, passando a unificar-se a designação dos magistrados na 1.ª instância, com manutenção de raiz «Procurador da República», atenta a tradição.

Poderá, porém, por-se em concreto, a questão de saber se deverá usar-se tal designação para todos os magistrados, acrescentando-se «de Círculo» para os que exercem funções actualmente confiadas aos Procuradores, ou se deverão pelo contrário os actuais Delegados passar a chamar-se «Procurador da República Adjuntos» em paralelismo com os Magistrados do M.P. que exercem funções nas instâncias.

Assim, porque a questão deve ser a seu tempo objecto de adequada ponderação, ir-se-á passar a designar adiante, indistintamente, todos os magistrados na 1.ª Instância como Procuradores da República, apenas. – No que respeita às formas de intervenção processual, deverão apenas ter-se em conta as alterações referidas supra, independentemente da formulação de regras sobre intervenção principal e acessória, que têm mais adequado cabimento nas leis de processo e resultarão desde logo, normalmente, da própria posição do M.P. na relação processual em questão, face aos interesses que lhe caiba em concreto defender.

O que se deverá estatuir será uma norma geral que torne expresso que ao M.P. caberá intervir nos processos, independentemente da representação ou patrocínio de um sujeito da relação processual principal, sempre que estejam em causa questões de interesse público, efectuando-se tal intervenção, naturalmente, nos termos das leis de processo.

Assim, propõe-se que seja estatuído, em concreto, pelo menos o seguinte:

Art. … (Representação do Ministério Público)

1 – O Ministério Público é representado, nos diversos Tribunais:

a) Nos Supremos Tribunais, no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas, pelo P.G.R. e por P.G.A.s.

b) Nos Tribunais de 2a instancia, por P.G.A.s.

c) Nos Tribunais de 1.ª instância, por procuradores da República.

Art. … (Intervenção)

1 –

2 – Em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, e nos casos de representação de interesses particulares do Estado em acção cível, a intervenção do M.P. só terá lugar a pedido do órgão competente, feito à P.G.R., e cessa quando for constituído mandatário próprio.

3 –

4 – O Ministério Público intervém nos processos sempre que estiver em causa um interesse público, designadamente:

a) Quando, não lhe cabendo a representação em juízo ou patrocínio dos mesmos, sejam interessados na causa o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, outras pessoas colectivas de direito público, pessoas colectivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes;

b) …

TÍTULO III
Da Organização do Ministério Público

Capítulo II
Procuradoria-Geral da República

Secção III
Conselho Superior do Ministério Público

No que respeita ao Conselho Superior do Ministério Público, o S.M.M.P. entende agora, como sempre, que deve ser repensada a estrutura e o papel deste órgão, agora com consagração constitucional, dentro de uma visão do Ministério Público como órgão de justiça integrado por magistrados, com atenção às particularidades decorrentes da sua organização hierárquica.

É com efeito neste órgão do Ministério Público que melhor se cristaliza a dialéctica entre o estatuto de magistrados dos membros do M.P., enquanto co-titulares de um órgão de justiça, que age junto dos Tribunais segundo estritos critérios de legalidade e objectividade, e o tradicional e adequado entendimento do M.P. como um todo orgânico, que por sua vez postula a existência de uma qualquer forma de hierarquia.

Ora é desta dialéctica que deve sair a realização da autonomia plena do Ministério Público, única forma de garantir que a sua acção se paute por critérios de estrita legalidade e objectividade; passando nomeadamente tal autonomia do M.P. pela compatibilização entre a sua estrutura orgânica hierárquica e a autonomia pessoal de cada um dos seus magistrados.

Com efeito, está já ultrapassada a questão do estatuto desta magistratura enquanto integradora de um órgão de justiça, no que respeita à vertente externa dessa autonomia, face ao determinado constitucional e legalmente quanto às relações do M.P. com órgãos externos ao poder judicial, nomeadamente com o poder político e o Governo. Assim, gozando actualmente o M.P., nomeadamente em matéria penal, de uma total autonomia, e aliás até, em muitos casos, independência, face ao poder político, caberá assegurar que tal independência não possa ser vista como uma forma de entregar, às estruturas dirigentes de um órgão cujos titulares não gozam de legitimidade política directa, nomeadamente eleitoral, um poder que pode aparecer facilmente como de natureza política, em sentido estrito.

Com efeito, a própria estrutura hierárquica do M.P. faz com que, ao contrário do que sucede com os magistrados judiciais, que decidem de forma independente e descoordenada entre si, se possa falar no exercício de uma actividade coordenada e dirigida à prossecução de finalidades de carácter global, nomeadamente de política criminal, o que representaria sem dúvida uma forma de condicionamento da vida em sociedade; condicionamento que se reveste, indubitavelmente, de carácter político em sentido estrito. Assim, tendo em conta os vastos poderes do M.P. neste domínio e mesmo noutros, compreende-se bem a fundamentação que pode ser invocada por quem alegue recear ver subtraída aos órgãos do poder político uma área tão importante da condução da política geral do país; para não falar dos casos em que se entenda, ou sugira, que o M.P. pode mesmo intervir, ou intervém de facto, na actividade política a outros níveis, nomeadamente de política partidária e eleitoral.

Naturalmente, estas considerações não são procedentes num sistema constitucional e legal como o nosso, que faz depender a actuação do M.P. de critérios de estrita legalidade e objectividade. Mas o certo é que a garantia última, e a efectiva confirmação pública, de que tais critérios serão efectivamente seguidos residirá, ultrapassada a questão da autonomia externa, na autonomia interna no M.P.

Esta autonomia interna deve consistir, além do mais, na possibilidade de as decisões e a actuação dos membros desta magistratura revestirem na medida do possível, e salvo orientações hierárquicas em contrário, devidamente assumidas, justificadas e publicitadas para o exterior do M.P., as características de aleatoriedade e desconcentração típicas das decisões judiciais; sendo tais características fruto da aplicação responsável e transparente dos critérios legais, segundo a consciência do magistrado, embora com as especificidades necessárias para permitir a manutenção da unidade de actuação do M.P., dentro da medida considerada desejável para a prossecução das suas funções.

Mas também esta medida de necessária unificação, coordenação e controlo da actuação dos magistrados do M.P. deve naturalmente, face ao exposto supra, ser efectuada dentro das mesmas condições de transparência e responsabilização que devem presidir à actuação, nomeadamente processual, de cada magistrado do M.P. Ora, como resulta já da sua actual composição e funções, e como será desejável que passe a resultar com maior clareza, o C.S.M.P. é o local privilegiado para a concretização e sedimentação do necessário grau de autonomia interna do M.P., e a sua actuação pode e deve ser um dos factores fundamentais de reforço das características de transparência e responsabilização que devem presidir à actuação dos diversos intervenientes, e à gestão das decisões de índole orgânica, que condicionam e conformam a actuação concreta dos magistrados do Ministério Público.

É pois no sentido de obter um aperfeiçoamento do exercício do papel crucial que cabe ao C.S.M.P. desempenhar, nos termos referidos supra, que serão feitas as propostas a seguir apresentadas quanto a modificações na sua composição, competências e funcionamento.

– No que respeita à composição do Conselho, entende o S.M.M.P. que a actual LOMP não se adequa já à última redacção dos preceitos constitucionais relevantes, nem à concepção do Ministério Público, e do papel que nele deve desempenhar o Conselho, que se entende resultar dos princípios constitucionais em matéria de organização judiciária.

Assim, como decorrerá de uma correcta interpretação do art. 222.°, n.° 3, da Constituição, defendida nomeadamente pelo Professor Gomes Canotilho em anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional que versou sobre a matéria, publicada na R.L.J., n.° 3818, não pode o Conselho integrar senão membros eleitos pelos Magistrados e pela Assembleia da República.

De resto, e independentemente de tal interpretação, parece que um correcto entendimento da autonomia do M.P. torna de per si injustificado, face às considerações já expostas, que possam ter intervenção nas decisões do Conselho quer os membros nomeados pelo Governo quer os Procuradores-Gerais-Adjuntos nos Distritos Judiciais.

Quanto aos membros do Governo, em coerência com o que foi já regulado quanto à cessação da intervenção governamental em matéria de exercício da acção penal, deverá ser eliminada a possibilidade de intervenção dos mesmos na matéria das decisões do Conselho, que deve ser reservada a membros eleitos pelo órgão politicamente representativo da pluralidade das opções do povo português, numa óptica que se entende adequada de intervenção de membros desligados da estrutura interna da Magistratura, em prol da transparência da actuação do M.P., fundamento da legitimidade de tal actuação.

Isto não quer porém dizer que seja inadmissível a presença de membros designados pelo Governo, e concretamente encarregados de representar o mesmo em permanência no Conselho, tal como pode fazê-lo pessoalmente o Ministro da Justiça. Como é natural, as funções de prevenção criminal que ao Governo cabe sempre exercer passam, embora apenas mediatamente, e no âmbito da aplicação das normas penais que ao M.P. cabe promover, pelo desenvolvimento da coordenação entre a actuação do Governo e a actuação globalmente considerada do M.P. Ora sendo o Conselho o local ideal para estabelecer tal coordenação, numa óptica de total transparência e respeito pela autonomia do M.P., poderão participar nas sessões do mesmo, com funções meramente consultivas e de iniciativa, tais membros designados pelo Governo. Isto permitirá potenciar a transparência e legitimação do Conselho e do próprio M.P. globalmente considerado, sem pôr minimamente em causa as determinações constitucionais, e nomeadamente a autonomia do M.P.

Quanto aos elementos integrantes da estrutura hierárquica do M.P., razões de defesa de total transparência na actuação do Conselho e de separação de funções, entre as que devem caber a este e as que caberão àquela estrutura, levam igualmente a que seja de eliminar a intervenção nas decisões do Conselho de tais elementos, com a excepção natural do Procurador-Geral da República, que a ele deve presidir, e que goza pessoalmente de legitimidade política para tanto. Não se vê também aqui, porém, razões que impeçam que tais titulares de cargos intermédios na estrutura hierárquica do M.P. participem das reuniões do Conselho, de forma a poderem dar a contribuição consultiva relevante, que lhes é facultada pelos conhecimentos adquiridos no exercício das suas funções, quanto ao estado dos serviços na sua área de competências e quanto aos Magistrados que na mesma exercem funções.

– Por outro lado, entende-se ser de reformular a actual forma de eleição dos membros a eleger pelos magistrados. Com efeito, numa óptica de reforço da pretendida representatividade, deve o princípio da proporcionalidade aplicar-se expressamente à designação de todos os membros. Isto apenas será cabalmente realizado, e até viável, se passar a ser estendido a todos os magistrados o sistema eleitoral actualmente previsto para os Delegados do Procurador da República, com apresentação de listas globais e preenchimento proporcional dos diversos lugares, de acordo com a votação de um corpo eleitoral único, constituído por todos os magistrados.

Claro que, em termos de capacidade eleitoral passiva, será de manter a obrigatoriedade de inclusão nas listas de elementos pertencentes aos diversos graus da carreira, se necessário recorrendo a mecanismos de atribuição de lugares que permitam a efectiva representação de elementos de todos os graus no Conselho; mas em termos de legitimidade eleitoral activa nada justifica, numa magistratura autónoma, onde os graus da carreira serão determinados pelo conteúdo funcional, que apenas eventualmente abrangerá o exercício de poderes hierárquicos em sentido estrito, qualquer distinção entre colégios eleitorais.

Também devem abandonar-se quaisquer regras que pretendam garantir formas de representação regional, injustificadas além do mais, na prática, face à dinâmica dos quadros do M.P. e face à própria concepção, necessariamente unitária e nacional, desta Magistratura.

– Quanto às funções que caberá ao Conselho exercer, deverá ser revista e alargada a actual regulamentação, no desenvolvimento dos conceitos já expostos sobre aquilo que deve ser o papel do Conselho na actuação do Ministério Público. Tal revisão deverá incidir basicamente em duas áreas, sendo a primeira a área da gestão e disciplina quanto aos quadros do M.P. e seus magistrados, área desde sempre nuclear na actuação do Conselho, e a segunda uma competência, em certa medida nova mas essencial à prossecução das finalidades do Conselho, inclusive em termos de gestão de quadros, que é a da possibilidade de intervir na definição das bases gerais da organização dos quadros do M.P. e da distribuição de serviço entre os magistrados.

Quanto à primeira área, devem ser criadas as disposições necessárias para permitir uma intervenção efectiva do Conselho na totalidade da gestão dos quadros do M.P., possibilitando uma cabal transparência das colocações e movimentações de Magistrados, a efectuar exclusivamente pelo Conselho e no cumprimento de regras objectivas, como as que serão formuladas adiante.

Quanto à segunda área, ligada aliás à anterior, é sabido que a evolução da realidade social e das solicitações que a mesma, e a consequente evolução legislativa, colocam ao M.P., têm levado a que o velho princípio da estruturação de quadros com base nas comarcas se torne na prática inviável, e até obsoleto, em muitos casos. Têm assim sido ensaiadas, no âmbito da actuação das diversas estruturas hierárquicas, variadas soluções que visam dotar a organização dos quadros do M.P. de maior funcionalidade e operacionalidade.

Isto tem porém sido feito na ausência de regras definidas e prévias, sendo desejável dotar de maior segurança jurídica e transparência as decisões tomadas a tal respeito, nomeadamente as que vão para além do que decorra directamente da adaptação às normas legais sobre organização judiciária. Para tanto, entende-se ser essencial a intervenção do Conselho, local onde poderão ser definidas, com total visibilidade, participação e legitimação, quer de ponto de vista exterior sobre a actuação do M.P., quer do ponto de vista interno da magistratura, as regras fundamentais sobre a organização local do M.P. e sobre a gestão de quadros e do próprio serviço.

Assim propõe-se nomeadamente, que seja cometida ao Conselho Superior do Ministério Público:

– a aprovação, quanto às comarcas e Tribunais com diversos magistrados, e sempre que tal se justifique face à necessidade de organizar quadros e distribuir o serviço de acordo com critérios especiais, de um Regulamento interno, a vigorar por determinado período, com base no qual se determinarão as regras de colocação de magistrados e distribuição de serviço;

– a fixação, em geral, e em relação com a proposta anterior, dos critérios que deverão presidir à especialização por sectores de criminalidade, dentro dos limites territoriais das comarcas e círculos, em especial nos grandes centros;

– a intervenção, pelo menos quanto à fixação de princípios genéricos, na coordenação interterritorial da actuação do M.P., nomeadamente nos casos de centralização vertical de competência que venham a ser possíveis nos limites fixados pela lei, se se optar por tal modelo nalgum tipo de criminalidade;

– a apreciação de reclamações relativas a distribuição de serviço, nomeadamente com base em violação de regulamentos internos da comarca ou lugar, incluindo aqueles que deverão ser aprovados pela estrutura hierárquica competente, nos casos em que não se justifique que seja o Conselho a efectuar tal regulamentação.

Entende-se por fim que o Conselho deve ser consultado pelo Procurador-Geral da República antes da formulação de directivas genéricas, assim como antes de ser decidida a substituição do magistrado a quem foi distribuído inicialmente um determinado processo.

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