I) Considerações geraisDepois da leitura do projecto de proposta de lei deve-se, antes do mais, reiterar a concordância do SMMP com as linhas gerais do diagnóstico e prioridades da reforma do Código de Processo Penal, lapidarmente sintetizadas no Despacho 54/MJ/96, pub. no DR II série, de 17-03-1996.

Dado que o projecto de proposta de lei, de uma forma geral, respondeu de forma coerente aos objectivos que presidem à reforma, sendo notória na maioria das propostas uma salutar preocupação de rigor técnico-jurídico, em termos globais o projecto merece aplauso.

Nas linhas que se seguem, vamos, tão só, formular algumas notas sobre aspectos que, na nossa perspectiva, deviam merecer alguns ajustamentos ou clarificações, o que não põe em causa a nossa concordância com a maioria das alterações e opções constantes do projecto de proposta de lei em análise.

Entre as propostas cujo mérito merece ser enfatizado podemos destacar:

– inovações tecnicamente adequadas e em consonância com os princípios gerais do processo penal e do processo de revisão, casos dos arts. 42.º, nº 3, 62.º, nº 3, al. b), 64.º, nº 3, 68.º, nº 1, 76.º, 86.º, 104.º, nº 2, 178.º, nº 5, 209.º, nº 2, 250.º, 290.º, nº 2, 333.º, 334.º, 337.º, nº 1, 356.º, nº 3, 364.º, nº 3, 372.º, nº 1 e 2, e dos novos regimes dos processos especiais;

– respostas juridicamente fundadas a alguns problemas práticos, casos dos art. 51.º, nº 4, 68.º, nº 4 e 5, 72.º, al. i), 77.º, 113.º, nº 8, 117.º;

– determinadas clarificações, em regra no sentido das interpretações mais correctas à luz do texto vigente, por exemplo os arts. 214.º, nº 4, 303.º, nº 4, 307.º, nº 5, 311.º, nº 3, 362.º, nº 1, al. d).

II) Análise de algumas questões especificas

Art. 27.º
Concorda-se com o sentido das propostas em matéria de competência territorial por conexão, sugere-se que, em coerência com a estrutura das diversas fases processuais e com o preceituado no art. 283.º, nº 4, se clarifique no art. 27.º (ou no art. 264.º, vd. infra), que a competência para a separação dos processos compete à autoridade judiciária que dirige a concreta fase processual.

Art. 62.º, nº 2, al. b)
Salvo melhor opinião, e por força do princípio da coerência sistemática, pensamos que só por lapso (aliás natural) não se terá referido neste preceito o caso previsto no art. 391.º-A, nº 3 (de outra forma era posta em causa a promoção tempestiva do processo abreviado).

Art. 86.º
Concorda-se com o sentido das alterações propostas em matéria de segredo de justiça, que dão uma resposta sensata e equilibrada a alguma pressão social (nem sempre fundada) nesta matéria.
Neste ponto apenas um pequeno pormenor nos parece merecedor de uma clarificação que se sugere: uma referência a autoridade judiciária no nº 9, em coerência com as redacções do nº 7 e nº 8 do mesmo preceito que tratam de restrições menos relevantes ao princípio do segredo de justiça no inquérito.

Art. 109.º, nº 2
Devia-se aproveitar o presente processo de revisão para uma correcção técnica da redacção originária do CPP, substituindo-se a referência a Ministério Público por magistrado do Ministério Público, pois a Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério Público e não um elemento estranho ao Ministério Público (tal como o Conselho Superior da Magistratura é o órgão superior da magistratura judicial).

Art. 113.º
Não se vislumbra utilidade à nova norma constante da al. c) do nº4 do art. 113.º.

Art. 114.º
O art. 114.º nº2 introduz um regime inútil porque a requisição ali prevista não tem efeito cominatório, e incorrecto, pois a obrigação de comparecer é da pessoa convocada e não do serviço onde a mesma se encontre inserida. Acresce que não se compreende a redacção da parte final, que contem um mero preceito regulamentar, mais próprio da orgânica onde se insere o notificando e decorrente das obrigações deste último enquanto subordinado hierarquicamente a outrem.

Art. 194.º
No que concerne à aplicação de medidas de coacção entendemos que se deveria consagrar expressamente o princípio, defendido pela generalidade da doutrina e reconhecido em Direito Comparado, de que durante o Inquérito o JIC não pode aplicar medida de coacção ao arguido mais gravosa do que a proposta pelo MP.

Refira-se que esse princípio, na nossa perspectiva, já decorre do preceituado pelo art. 194.º, nº 1, mas é necessária a aludida clarificação, em virtude da existência de jurisprudência contraditória, que aliás põe em causa de forma grave direitos, liberdades e garantias e o próprio princípio constitucional do acusatório (trata-se pois duma proposta que se insere nos objectivos constantes da al. h) do ponto 3.2 do despacho 54/MJ/96 e a que a proposta de lei deu grande atenção, cfr. os arts. 214.º, nº 4, 303.º, nº 4, 307.º, nº 5, 311.º, nº 3, 362.º, nº 1, al. d)). Pois não se compreende que sem a existência de culpa formada (o que de acordo com a doutrina do tribunal constitucional só acontece com a dedução de acusação), possam ser impostas por um órgão incompetente para o exercício “ex oficio” da acção penal medidas mais graves do que as promovidas pelo titular da acção penal. A entender-se que o JIC tem competência para, no inquérito, impôr medida mais grave que a requerida pelo MP, pode-se dar origem a situações em que o JIC imponha medidas de coacção extremamente gravosas para o arguido (“maxime” a prisão preventiva) em casos em que o MP entende que nem sequer existem indícios suficientes da prática de crime que torne, abstractamente, admissível essas medidas vindo a arquivar posteriormente o inquérito (o que não seria caso original), ou aplicação de medidas mais graves que as requeridas em situações em que o titular do inquérito as considere prejudiciais para a investigação e, inclusive, para a manutenção ou obtenção da prova.

Art. 215.º, nº 3
Pensamos que a alteração aqui proposta (determinada pela eliminação, que se aplaude, do nº 2 do art. 209.º) devia ser melhor ponderada, sob pena de se pôr em causa alguns dos objectivos do projecto do Governo. Com efeito, impedir o prolongamento de prazos previsto no art. 215.º, nº 3, designadamente, nos processos por crimes de associação criminosa, contra a soberania nacional (por ex. art. 312.º, 315.º, nº 2, 333.º do CP), de furto ou falsificação de veículos, de falsificação de moeda ou de títulos de crédito, de burla qualificada (designadamente através do sistema bancário ou informático) de excepcional complexidade devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime, pode pôr em causa o sucesso da repressão criminal de alguma da criminalidade mais grave. Acresce que esta norma quase fica esvaziada de sentido, pois, além dos crimes relativos ao tráfico de estupefacientes, são poucos os crimes com penas superiores a 8 anos de prisão subsumíveis aos requisitos do nº 3 do art. 215.º (em que existindo presos preventivos o procedimento se revele de excepcional complexidade).

Pelo exposto, sugere-se que:

1) se reproduza o elenco do actual 209.º, nº 2 (acrescido da referência às burlas qualificadas através do sistema financeiro) ou se substitua a proposta pela referência a crimes com pena de prisão de máximo igual ou superior a oito anos;

2) estabeleça-se a regra de que o prolongamento dos prazos ali referidos apenas deve ocorrer após despacho fundamentado do juiz nesse sentido.

Art. 264.º
Entendemos que se deve fazer coincidir a regra de competência territorial constante do art. 264.º com a que resulta da do art. 19.º, a fim de evitar uma inútil querela conceptual sobre a distinção entre o lugar do cometimento e o lugar da consumação do crime (vd. ainda o comentário supra ao art. 27.º).

Art. 268.º, nº 1, al. c)
Entende-se que se deve aproveitar a presente revisão para resolver a incongruência sistemática da conjugação do art. 181.º, nº 1 (onde se refere que a competência é da autoridade judiciária, MP ou juiz, conforme a fase) com a al. c) do nº 1 do art. 268.º, que apenas devia referir-se ao nº 2 do art. 181.º (embora, à luz do texto vigente, seja defensável, e na nossa perspectiva a mais correcta, a interpretação que limita a necessidade de intervenção do JIC aos casos do nº 2 do art. 181.º, a actual redacção da al. c) do nº 1 do art. 281.º pode colocar dúvidas a muitos aplicadores)

Art. 270.º, nº 3
Entende-se que tendo em atenção o valor probatório das perícias (muito diferente dos exames, por exemplo), a possibilidade de delegação em autoridades de polícia criminal da “faculdade de ordenar a efectivação de perícia relativamente a determinados tipos de crime”, é incompatível com as garantias de defesa adequadas a um Estado de Direito. Aliás essa intervenção policial, que, frise-se, põe em causa direitos de defesa do arguido ou suspeito, não tem fundamento na protecção de quaisquer valores de ordem constitucional pois vai além das (justificadas constitucionalmente) competências policiais em matéria de medidas cautelares. Acresce que se se estiver a pensar na efectivação de perícias por organismos inseridos nas orgânicas de determinados órgãos de polícia criminal, não se justifica a delegação (que aliás não pode ser genérica) da faculdade de ordenar a efectivação da perícia, pois a decisão da realização desse acto deverá competir sempre à autoridade judiciária competente. Em face do exposto, entende-se que apenas deve ser admitida a possibilidade (que já resulta do nº 1) de delegar as diligências necessárias para a efectivação da perícia em órgãos de polícia criminal, mas nunca a de a ordenar.

Art. 278.º
Entende-se que, salvo o devido respeito, não tem fundamento a alteração proposta para este preceito. Com efeito, não se pode condicionar o dies ad quem do termo de um prazo a uma circunstância que não se verifica na maioria dos processos (a existência de assistente). Acresce que o problema da intervenção hierárquica (por princípio um procedimento oficioso de controlo1) não se deve confundir com a impugnação jurisdicionalizada do despacho do Mº Pº, pelo que o dies ad quem do prazo que limita a aquela intervenção deve existir por referência ao acto, dependendo a efectivação e termos desse controlo da organização e funcionamento do Mº Pº, enquanto magistratura hierarquizada.

Art. 330.º
Concorda-se integralmente com a alteração quanto à obrigatoriedade da substituição de defensor ter de ser realizada por advogado ou advogado estagiário.
Já no que concerne à substituição do magistrado do Ministério Público entende-se que se impõem algumas alterações, em coerência, aliás, com a ocorrida para o defensor:

1- O caso não é de substituição do Ministério Público órgão de justiça mas de magistrado do Ministério Público já que, para todos os efeitos o substituto legal representa o Ministério Público.

2- Tendo em atenção a dignificação da audiência de julgamento, a autonomia das magistraturas, o princípio do acusatório, a existência de uma estrutura organizada do Ministério Público com órgãos responsáveis pelo seu funcionamento, entende-se que, se não estiver presente no início da audiência o magistrado do Ministério Público deverá ser contactada, pela via mais célere, a Procuradoria-Geral Distrital para indicar magistrado ou outro substituto legal, ao qual se pode conceder, se assim o requerer algum tempo para examinar o processo e preparar o julgamento.

Art. 336.º, nº 3
Apenas se alerta para um pequeno lapso, pois certamente pretendeu-se referir o nº 5 do art. 283.º e não o nº 3.

Art. 373.º
Atendendo à existência de jurisprudência em sentido contrário entende-se que, por maioria de razão se deve enfatizar que à leitura da sentença (pelo menos quanto à matéria de facto) se aplica o princípio da continuidade e o prazo peremptório do art. 328.º, nº 6.

Art. 374.º, nº 2
Tendo em atenção a obrigatoriedade constitucional da motivação das sentenças, a doutrina quase unânime nesta matéria, e a existência de jurisprudência em sentido contrário, entende-se que se devia manter a clarificação constante da al. b), do nº 2, do art. 374.º do anteprojecto da comissão revisora, isto é, a fundamentação da sentença deve conter: a) enumeração e narração dos factos provados e não provados; b) motivação de facto, com exame crítico de todas as provas que ao tribunal cumpra conhecer; c) motivação de direito.

Processo Sumário
Concorda-se globalmente com as propostas relativas ao regime do processo sumário, apenas com 3 ressalvas:

a) Deveria manter-se a impossibilidade legal de os menores de 18 anos serem sujeitos a tal forma de processo abreviado (art. 381.º, nº 2, da redacção originária do CPP).

b) Pensamos que o art. 387.º, nº 2, da proposta de revisão, tem de ser corrigido ou clarificado, com efeito, desse preceito pode inferir-se que ocorrendo uma detenção entre as 18 e as 9 horas, a entidade policial deve em todos os casos libertar o arguido (sendo que há casos de crimes puníveis com prisão até 5 anos que justificam, em concreto a imposição de prisão preventiva), notificando-o para comparecer perante o Ministério Público. É nossa opinião que caso essa solução fosse adoptada, em moldes genéricos e automáticos, seria geradora de alguma insegurança pública, pelo propomos que se proceda aos ajustamentos pertinentes, que obviem a essa eventual crítica.

c) Atenta a tramitação deste processo abreviado, em que, nomeadamente, “o Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia”, entende-se que se o Ministério Público não estiver presente na audiência e não puder comparecer de imediato, o processo deve ser remetido para a fase comum, sob pena de violação dos princípios constitucionais do acusatório e da titularidade do exercício da acção penal, o que além do mais se traduz na violação de garantias fundamentais com consagração constitucional. Pelo que propõe-se a alteração do art. 389.º, nº 1,
” se o Ministério Público não estiver presente na audiência e não puder comparecer de imediato, o tribunal remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual”.
Sendo certo que, como resulta também nos casos do art. 390.º, o MºPº pode exercer a acção penal sob a forma de processo abreviado, estando devidamente salvaguardado o princípio do acusatório.

Processo Abreviado
Aplaude-se a inovação constituída pelo processo abreviado, que é um dos aspectos mais meritórios do projecto de proposta de lei de revisão do Código de Processo Penal.
Temos, contudo, uma objecção à circunstância de se adoptar uma terminologia, inadequada a esta forma de processo, herdada do sistema jurídico anterior ao CPP de 1987, “requerimento acusatório”.
Na nossa perspectiva:
1) dado o inequívoco carácter decisório do acto do Ministério Público que determina a tramitação sob a forma de processo abreviado (aliás no nº 4 do art. 391.º-A fala-se expressamente em decisão, “sentido da decisão”), o mesmo deve ser definido como despacho, quer por força da interpretação sistemática do CPP, quer por força do art. 97.º, nº 2 que define como despachos todos os actos decisórios do MP;
2) aliás esse acto além de um despacho é uma acusação, sendo equivalentes os respectivos requisitos (cfr. art. 391.º-B, nº 1);
3) sendo seguida de um despacho judicial de saneamento equiparado ao do art. 311.º (art. 391.º-C);
4) acrescente-se que esse acto é diferente do requerimento no processo sumaríssimo, em que o Ministério Público requer que seja aplicada uma determinada pena e não se limita ao exercício da acção penal nos termos da lei do processo.
Em face do exposto, e em coerência com a ratio do instituto concebido na proposta de lei do governo, entende-se que as referências a “requerimento” (art. 391.º-A: nº 1 e 3; art. 391.º-B: epígrafe, nº 1 e 2; art. 391.º-C; nº 2), devem ser substituídas por “decisão” e/ou “despacho” do Ministério Público.

A Direcção do S.M.M.P.
Lisboa, 29 de Outubro de 1997

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[1] Terminologia feliz adoptada pelo Sr. Procurador-Geral da República Dr. Cunha Rodrigues (Revª do Mº Pº, ano 16º, nº 62, p. 24).

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