Licínio Lima
JUSTIÇA
Um novo pacto para a justiça é a proposta apontada nos debates eleitorais entre os líderes partidários com assento parlamentar quando confrontados com o ambiente tenso que se regista no foro judiciário. Entre os operadores que diariamente pisam os palcos dos tribunais e vivem com o sistema, diz-se que a sugestão do pacto é mais um chavão para disfarçar a incompetência política para gerir dignamente a separação de poderes
Oúltimo grande apelo para que se alcance um pacto para a justiça partiu de Marcelo Rebelo de Sousa, no discurso de abertura do ano judicial de 2016. O Presidente da República, acabado de ser eleito, lançou a ideia de os operadores do sistema estabelecerem entre si acordos, ou pactos, sobre temas relevantes da justiça. Os representantes dos juízes, procuradores, advogados, oficiais de justiça e solicitadores e agentes de execução aceitaram o repto e trabalharam em conjunto os temas por eles considerados mais relevantes, sem qualquer interferência de Belém. Em finais de 2017, para ultimar o documento que iria ser entregue a Marcelo Rebelo de Sousa antes da abertura do ano judicial de 2018, juntaram-se em Troia, durante três dias, numa maratona contra o tempo que iria culminar num documento com 80 propostas para melhorar o funcionamento da justiça. Hoje, questionados alguns dos protagonistas sobre o impacto que tais propostas tiveram no sistema judiciário, todos disseram não terem memória de que alguma, entre as 80, tenha sido aproveitada pelo poder político para transformá-la em lei ou norma. O trabalho de quase dois anos caiu em saco roto e já nem Marcelo Rebelo de Sousa se recorda do desprezo com que a sua iniciativa foi encarada por parte da geringonça. Os operadores judiciários deixaram de acreditar em pactos.
Fernando Jorge era, em 2016, o presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça (SOJ) e, em conversa com o NOVO, diz recordar-se perfeitamente dos dias passados em Troia com outros operadores judiciários, nomeadamente o então bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Guilherme Figueiredo, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público ( SMMP), António Ventinhas, a presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses ( ASJP), Manuela Paupério, e o bastonário da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução (OSAE), José Carlos Resende.
Segundo Fernando Jorge, não houve acordo em tudo. “O consenso não substitui a divergência nem suprime a sua necessidade”, disse. No entanto, lembrou, todas as propostas foram adotadas por completa unanimidade e tinham tradução prática, isto é, nenhuma se quedava num mero sentido proclamatório. Umas eram mais dens ificadas que outias. mas todas necessitavam de trabalho político e técnico posterior. Ou seja, explicou, seria essencial que o Presidente da República, que suscitou o debate, assim como o governo, a Assembleia da República e todos os partidos políticos assumissem o comprometimento político de avaliar seriamente as conclusões e, na área das respetivas atribuições e competências, as submetessem a discussão política. Nada disto aconteceu, reconhece, lamentando que se continue a proclamar “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça, quando se sabe que tudo é política”.
O antigo bastonário da OSAE, José Carlos Resende lembrou que. em 2016, em resultado do ruído provocado por processos muito mediáticos, como a Operação Marquês, o BPN. o BPP e outros que envolviam figuras públicas e políticas, a imagem pública do sistema e dos seus agentes estava, à época, muito desgastada. Assim, considera que a ideia de Marcelo Rebelo de Sousa “surgiu num momento histórico sensível para o sistema de justiça, respondendo à necessidade de olhar esta área com a relevância que tem e procurando fazer con fluir vontades num propósito comum de melhoria”. Em seu entender, a interpelação de Marcelo ao entendimento entre os agentes do judiciário significou, antes do mais, uma convocação à ação no sentido de se ultrapassar alguma inércia no seio do sistema, assim como de romper algumas quezílias corporativas entre os agentes judiciários. Por outro lado, acrescentou, no passado houve a tentativa de se alcançar um denominado “pacto para a justiça”, numa lógica diversa, de acordo entre os dois partidos políticos com maior representação parlamentar e com o intuito de atribuir alguma estabilidade “suprapartidária” às matérias da justiça capaz de as retirar da querela política e fundá-las em prazo de vida superior ao das legislaturas. Conforme referiu, foi um modelo que não vingou. “Não quer dizer que os pressupostos desse pacto não fossem válidos. Atesta apenas que, à época, o sistema partidário não se encontrava em condições de tratar com estabilidade os temas da justiça. Outro caminho tinha de ser procurado.”
O antigo basto nário referia-se ao pacto assinado em setembro de 2006 entre PS e PSD. Passado uns meses, em novembro.
o PS fazia aprovar no parlamento novos estatutos para os magistrados do Ministério Público e para os juízes. O então presidente do PSD, Luís Filipe Menezes, considerou a iniciativa uma afronta por o seu partido não ter sido previamente consultado, conforme havia sido combinado no pacto, e logo avisou que iria colocar reservas a outros diplomas, como a lei orgânica da Polícia Judiciária ou a Lei da Segurança Interna. “Se o PSD foi necessário para um primeiro caminho de reconstrução de uma arquitetura da justiça, o PSD e os outros partidos não podem ser ignorados na procura de consensos sobre estes diplomas”. afirmou, em novembro de 2006. Depois, não se entendeu com José Sócrates, então primeiro-ministro, e o pacto da justiça, assinado pelos líderes parlamentares, Luís Marques Guedes (PSD) e Alberto Martins (PS), caiu em saco roto.
A Associação Sindical de Juízes Portugueses ( ASJP) denunciou manobras impróprias para atacar o juiz de instrução que interrogou os três arguidos suspeitos de corrupção na Madeira e acabou por ‘ decidir libertá-los após três semanas de detenção. “Sem prejuízo do escrutínio livre e democrático da ação da justiça, inteiramente legítimo e salutar, são impróprias todas as manobras, vindas de onde vierem, visando de sc red ibi lizar publicamente o juiz, seja para obter vantagem no processo ou por qualquer outra razão. Os casos judiciais não são ‘guerras’ entre sujeitos processuais nem se decidem nas páginas dos jornais ou nos programas de televisão e rádio”, denunciou em comunicado. A deliberação surgiu na sequência de uma nota divulgada pela Procuradoria-Geral da República, em que contestou o entendimento do juiz Jorge Bemardes de Melo de não haver indícios de crimes do agora ex-autarca do Funchal Pedro Calado e dos empresários Avelino Farinha e Custódio Correia, lembrando que outros cinco juízes de instrução tinham anteriormente tomado decisões sob a convicção de existirem indícios criminais.
António Ventinhas, ex-presidente do SMMP, em conversa com o NOVO, reconhece que aquele modelo de pacto protagonizado pelos dois maiores partidos poderia ter tido êxito numa democracia madura. O modelo de 2018, focado nos operadores judiciários, também poderia ter sido bem-sucedido. Mas nenhum resultou.
Será agora o momento certo para se pensar num novo pacto? António Ventinhas duvida que se deva pensar nisso agora. “Quando ouvimos os debates eleitorais, notamos que se fala mais no governo do Ministério Público do que propriamente no governo da justiça”, disse.
Todos os nossos interlocutores, os que quiseram e os que não quiseram identificar-se, concordam que o momento que agora se vive é muito mais complexo que o de 2016. Nas diversas ocasiões em que o poder político atacou o MR como aconteceu no caso Moderna (1999), no caso Casa Pia (2022) ou até mesmo no caso BPN e BES, as magistraturas, juízes e procuradores procuraram sempre apoiar-se, ilustrando-se essa solidariedade na dupla Carlos Alexandre (juiz) e Rosário Teixeira (MP), em que se um dizia “mata”, o outro dizia “esfola”. Com a ida de Carlos Alexandre para a Relação, esse modelo desapareceu. O MP anda perdido. Por outro lado, o poder político atribuiu ao MP a responsabilidade pela queda dos governos da República e da Região Autónoma da Madeira. Os magistrados estão de costas voltadas e os políticos não sabem ainda o que fazer para deixarem de ter medo do MP. Por isso, quando se lhes pergunta o que acham, dizem “Temos de fazer um pacto para a justiça” Sem saberem, no entanto, o que isso significa ao certo do ponto de vista prático: se um pacto como o de 2006, como o de 2018 ou se nenhum dos dois.
Os magistrados estão de costas voltadas e os políticos ainda não sabem o que fazer para deixarem de ter medo do MP. Por isso, quando se lhes pergunta o que acham, eles dizem: “Temos de fazer um pacto para a justiça”
Associação de juízes denuncia manobras impróprias contra juiz do caso da Madeira