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‘Parece que toda a gente se esquece do crime de ocultação de riqueza’

MANUEL SOARES (PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES)

‘Vou desaparecer. Quero voltar à minha vida pessoal e profissional porque sou juiz’

‘Parece que toda a gente se esquece do crime de ocultação de riqueza’

MANUEL SOARES
Presidente da Associação da Direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

A despedir-se da presidência da ASJP, Manuel Soares afasta novos cargos com protagonismo público e confessa não ter ficado surpreendido com os programas dos partidos para a Justiça, cheios de ‘propostas vagas e redondas’.

Felícia Cabrita

Já teve oportunidade de ler os programas eleitorais dos partidos?

Já passei os olhos por todos, não fiquei muito impressionado.

Não é desta, portanto, que haverá mudanças e uma reforma na Justiça?

Tendo em conta os problemas principais da Justiça, os partidos – todos sem exceção -, para não se comprometerem muito antes das eleições, defendem-se com propostas vagas e redondas. Mas há lá uma ideia interessante e óbvia, que é da AD, podia ser de outro partido, mas é deles.

A AD propõe a criação de uma comissão permanente para a Justiça, a funcionar na Assembleia da República.

Acho que isso faz mesmo falta. Qualquer estrutura que pense a reforma da Justiça, com tempo e de uma forma alargada, afastada de interesses partidários conjunturais do partido A ou B, e que apresente uma proposta bem fundamentada para que os partidos possam, no Parlamento, discutir e aprovar, é bem-vinda. Nós temos interlocutores. Nestes seis anos já estive 20 ou 30 vezes em reuniões com os grupos parlamentares. Da última vez, até pensei para mim: ‘Bolas, mas eu já disse isto tantas vezes, será que não ouviram?’.

Pelo menos, foram aproveitadas nos programas eleitorais algumas das propostas que a ASJP. Isso surpreendeu-o?

Apenas significa que os interlocutores existem, ouvem as mensagens, penso que as ponderam, mas, depois, politicamente não dão sequência a nada. Na última reunião parlamentar que tivemos, penso que foi com o Chega, levamos um programa que dava para todos os partidos. Como as propostas dos juízes são política e ideologicamente neutras, cada partido com o seu programa ideológico tem onde se inspirar. Portanto, se tivessem interesse e dessem atenção, com certeza já teriam feito as reformas necessárias para a Justiça.

O programa da AD mostra abertura para uma série de coisas de que tem falado: rever as regras da fase de instrução, enriquecimento ilícito, os recursos, até encurtar despachos, sentenças…

Já temos um crime na lei que cobre quase todas as situações que a criminalização do enriquecimento ilícito poderia abranger. Mas acho que o MP ainda não percebeu bem. E os partidos que aprovaram a lei por unanimidade parece que já o esqueceram. Vou-lhe dar um exemplo abstrato. Imagine que sou presidente de câmara, primeiro-ministro, chefe de gabinete ou juiz e há uma suspeita contra mim. A Felícia Cabrita é da PJ, vai a minha casa e encontra 100 mil euros. A criminalização do enriquecimento ilícito visa perceber se esse dinheiro tem proveniência ilícita. A lei partia da presunção que sim e eu é que tinha de fazer a prova. Isto, como já se viu, não passa no Tribunal Constitucional (TC). Mas temos na lei o crime de ocultação de riqueza. E, neste exemplo que lhe dei, o MP só tem de provar que o dinheiro é meu e que não o declarei. E, para provar, basta ir confirmar na declaração de rendimentos e património que apresentei antes no TC. O TC não quer saber se o dinheiro é lícito ou ilícito, apesar de essa parte poder ser também investigada, mas neste caso havia já um crime punível com cinco anos de prisão.

Pelos vistos, há juízes que também não leram a nova lei. No caso da Madeira, existem muitos depósitos em numerário que não foram declarados ao Fisco, não se sabe a sua origem, a investigação ainda não estabeleceu a ligação de causa efeito, limita-se a constatar, mas o juiz também não retirou qualquer conclusão.

Tudo depende da indiciação que o MP leva ao juiz de instrução. Se o MP disser que essa pessoa tem este dinheiro e não o declarou e, portanto, cometeu o crime da lei das Obrigações Declarativas, o juiz vai ter de apreciar. Mas eu tenho chegado à conclusão que normas aprovadas no Parlamento, em determinados casos, não têm tido por parte dos magistrados leituras muito atentas. Portanto, não é necessário criar nova alhada com o TC, com uma coisa que é inconstitucional, quando temos na lei um mecanismo que permite cobrir as mesmas situações.

Curiosamente, quer a AD quer o PS propõem que seja implementada a ‘pegada legislativa’, ou seja, a obrigação de publicar no portal do Governo as várias etapas de um processo legislativo e administrativo. Parece um tiro certeiro na ‘lei malandra’, da Operação Influencer.

Isso não sei. Mas é evidente que, no exercício de funções públicas, as pessoas que têm a responsabilidade de distribuir dinheiro, seja através da adjudicação de obras, de contratos, até da aprovação de leis ou regulamentos que vão refletir-se positivamente no negócio de uma determinada empresa e, se houver suspeitas de que algum ato ilícito foi praticado, é importante conseguir perceber o percurso que existiu antes do ato relevante. Por isso, os mecanismos que tornem esse percurso conhecido ou mais transparente são positivos. Sobretudo se passar a ser obrigatório, por exemplo, divulgar as agendas, as reuniões, as pessoas que estão nas reuniões, o objetivo da reunião. Se houver uma reunião que não tenha sido divulgada isso é um indício de que qualquer coisa menos apropriada aconteceu.

Nem o PS nem a AD dizem claramente se querem mudar a forma de nomeação do procurador-geral da República (PGR). Mas a designação do próximo PGR é a primeira grande decisão que o próximo Governo, tendo como pano de fundo casos que causaram muitos estilhaços políticos, vai ter de tomar na Justiça. Não é irónico?

É verdade. Mas eu não vejo que haja necessidade de mudar a forma de designação do PGR. O problema não está aí. O poder político, numa nomeação que é concertada entre o Executivo e a Presidência da República, escolhe uma personalidade que considera adequada para o exercício do cargo. Podem acertar ou não, mas isso acontece sempre que se escolhe alguém. E essa forma de nomeação garante bem que o procurador, ou procuradora que é nomeado mantém um grau de independência em relação ao Executivo. Evidentemente que há um vínculo ao Executivo: o Executivo aprova, nomeadamente, a legislação de atribuição de prioridades na investigação criminal e isso vincula a PGR. Mas não acho que os problemas, uns reais e outros imaginários, que se podem apontar quer à atual procuradora quer aos anteriores resultem da forma de nomeação. Também temos pessoas eleitas para cargos por iniciativa parlamentar – por exemplo, os juízes do TC – e não é por isso que deixam, e com certeza muitas vezes injustamente, de ser acusados de terem ligações ao PS ou PSD. O Parlamento também já mostrou que é capaz de desvirtuar a forma de eleição nomeando pessoas de forma a dividir os lugares entre um partido e outro. Portanto, a forma de eleição pelo Parlamento também não é perfeita.

Encontrou alguma proposta eleitoral que seja atentatória de direitos humanos ou inconstitucional?

O que me está a perguntar remete imediatamente para o programa do Chega, não é?

Pedem prisão perpétua, castração química…

Evidentemente que há ali propostas que chocam com os princípios constitucionais. Apesar de argumentarem que a pena nunca seria perpétua porque estaria sujeita a um grau de avaliação, acho que a nossa Constituição não permitiria que algumas propostas dessas passassem. Mas o Chega também tem uma proposta de revisão constitucional, não é? O Chega tem legitimidade para apresentar as propostas que quiser e, amanhã, se vier a fazer parte de uma solução de Governo, seja lá qual for, e tiver influência nas propostas legislativas, tem de saber, como qualquer partido, que há um Presidente da República e outras entidades que podem mandar as propostas ou a legislação aprovada para o TC, que verifica se há ou não violação da constituição.

Os arguidos detidos na Madeira aguardaram 21 dias pela decisão do juiz. Nunca tal aconteceu em processos mediáticos. Temos aqui um problema, não acha?

Claro. No plano objetivo, isso pode dever-se a vários fatores. Pode resultar da complexidade do processo, do facto de o MP ter indo apresentando documentos ‘aos bochechos’, de o juiz poder ser mais minucioso, mais formalista, dos arguidos terem falado mais tempo do que seria de esperar ou de os arguidos terem sido confrontados, um a um, com cada escuta, com cada documento, e isso ter demorado mais. A causa dos 21 dias pode ser uma destas coisas ou estas coisas todas juntas. Mas, objetivamente, 21 dias é excessivo. Como é que isto se podia resolver? Pelo que fui vendo na imprensa e, nomeadamente, das declarações de um dos advogados dos arguidos que explicou como tinha sido o processo de interrogatório, fiquei com a ideia de que o juiz, mesmo que entendesse, a meio do interrogatório, que aquilo não ia dar prisão, tem o entendimento que a lei não o permitiria libertar. E isso não é uma coisa isenta de dúvidas! A lei diz: ‘interrogatório judicial de arguido detido’. Ou seja, não é certo que a lei permita que o arguido deixe de estar detido antes do interrogatório terminar. E por isso é que eu já escrevi que devíamos encontrar uma forma de colocar na lei, de uma forma expressa, a possibilidade de o juiz, se perceber a meio do interrogatório que vai haver demora e que a pessoas em causa não vai fugir, mandá-la, por exemplo, para casa com a obrigação de comparecer ali todos os dias no tribunal.

Mas estamos a falar num inquérito, como a senhora PGR disse no comunicado, que já não está em segredo de justiça. Justificam-se estas detenções?

Isso é uma questão prévia. O MP, nesse comunicado, diz: há aqui um excesso da parte do juiz. Mas o excesso pode ter começado na Madeira. Ou seja, era preciso deter aquelas pessoas para primeiro interrogatório? Não sei por que foram detidas, presumo que isso deve estar explicado no processo. A lei diz que a detenção é uma medida excecional, só deve ser usada se houver razões para acreditar que as pessoas uma vez notificadas não se apresentam voluntariamente a tribunal.

Parece que sem detenções não há caso. No processo Face Oculta, por exemplo, além do empresário Manuel Godinho, não houve outro detido e, no entanto, foi uma investigação exemplar.

Mas temos tido investigações em que há pessoas acusadas e condenadas que não estiveram detidas, nem foram presentes a interrogatório desta forma, e temos visto pessoas que foram detidas com muita visibilidade e não foram ainda condenadas, embora nos casos mais recentes que estamos a discutir a procissão ainda vá no adro. O poder judicial ainda não se pronunciou. É preciso ter em atenção que o poder judicial fala em vários momentos. No caso da Madeira, o MP, entidade que conduz a investigação, apresentou a promoção ao poder judicial, que por sua vez se representa a duas vozes: houve a decisão de primeira instância e haverá a do Tribunal da Relação, que dirá em definitivo se a detenção foi exagerada e se o MP tem indícios ou não. Nós é que queremos comentar logo tudo e achar que o mundo está resolvido a cada passo do processo, mas os processos judiciais são feitos de certezas provisórias: umas vão-se confirmando e outras alterando.

Como aconteceu na Operação Marquês, em que, apesar de o acórdão da Relação vir dar razão ao MP, ainda se fazem apostas para saber qual dos dois juízes tem razão?

O que prova que crucificar o MP ou endeusar o juiz, ou crucificar o juiz e endeusar o MP até haver uma decisão final é precipitado. Nesse caso, se bem se lembra, toda a gente caiu em cima do MP porque tinha feito uma acusação megalómana, pois chegou ao juiz de instrução e caiu tudo. Foi à Relação, que disse que nem tudo o que o MP pôs na acusação tinha pernas para andar.

Não é bem assim. Deu razão basicamente em tudo!

Bom, consideraram que tinha pernas para andar. E, aí, foi tudo ao contrário: afinal, era o juiz de instrução que não percebia nada daquilo e o MP já tinha razão. Por isso, como disse há pouco, o processo é um conjunto de certezas provisórias. Se quisermos a cada momento comentar o processo como se já fosse a certeza definitiva, arriscamo-nos a, um ano mais tarde, termos de engolir as palavras que dissemos.

Voltando aos 21 dias que os arguidos do caso da Madeira estiveram detidos, isso depois dá ideias à classe política. A AD ainda foi a tempo de colocar no seu programa a proposta de fixar no Código de Processo Penal o limite máximo de 72 horas para uma decisão do juiz após detenção e a possibilidade de intervenção de mais do que um juiz se necessário. Acha viável?

Ai é? E se for detido um grupo de terroristas que estão a ser investigados por estarem a preparar um atentado? São todos estrangeiros. Chega ao fim das 72 horas e o juiz diz: ‘Olhem, os senhores tiveram sorte, fujam lá para o estrangeiro, foi um gosto, nós não conseguimos acabar isto a tempo. Vejam lá se para a próxima fazem o atentado noutro país!’. Não pode ser, não é?

Quer dizer que isto é o exemplo típico de medidas tomadas ‘a quente’ pelo poder político quando a Justiça lhes bate à porta?

Não precisamos de uma medida dessa natureza, de impor um limite a partir do qual o interrogatório não pode continuar. Mas pode-se criar uma outra norma que permita que, quando for justificado que o interrogatório continue, a pessoa não tenha de ficar detida. Imagine que era possível colocar uma pessoa que vai estar sujeita a um interrogatório durante 20 a 30 dias na sua residência, com pulseira eletrónica. Qual era o mal para o processo? Ou seja, há medidas menos invasivas da liberdade e dos direitos sem ser uma detenção. Por isso, penso, que a lei precisaria aqui de uma clarificação, para não chegarmos a medidas mais radicais como essa das 72 horas. Porque para isso bastava o advogado dizer ao arguido para ele falar durante 72 horas sem se calar.

E é nestes momentos que aparecem as figuras do costume com ideias bastante duvidosas. O ex-presidente do PSP, Rui Rio, trouxe novamente ao debate a velha ideia reúnem num sítio escuro a combinar uns com os outros atacar o poder político: hoje é o dia do PSD, amanhã é o dia do PS. Aliás, se isso acontecesse, também tinham de combinar com os juízes de instrução, com os da Relação.

Então, que lições se devem retirar do processo da Madeira depois do burburinho que se levantou nas últimas semanas?

Nenhumas. Porquê retirar lições de um processo que ainda está numa fase inicial?

Mas é normal haver posições tão antagónicas?

São antagónicas agora. Se amanhã a Relação vier a dizer que o despacho do juiz está errado, que há indícios e que se deve repetir o interrogatório para aplicar medidas de coação, deixam de ser antagónicas. Ou seja, a posição do juiz de instrução ainda não é definitiva.

Mas parece que está instalada uma guerra entre juízes e MP. Também se soube que o juiz de instrução da Operação Influencer rebateu ponto a ponto o recurso do MP para a Relação. Também não tenho memória de isto alguma vez ter acontecido.

Vamos lá ver. Sempre que há um recurso com certas características, como é este, está previsto na lei que o juiz tem um momento para reparar a decisão ou sustentar a decisão – e isso é processualmente legítimo. Não é normal é que isso saia nas páginas dos jornais. Não sei se esse juiz noutras decisões fez o mesmo. Aqui, pelos vistos, considerou que devia sustentar a decisão que tomou com os argumentos que considerou importantes face à argumentação que estava no recurso – e isso não tem nada de anormal. Quanto à questão da guerra entre MP e juízes, acho que não existe. Os juízes não têm de andar de braço dado nem aos beijinhos com os procuradores nem com os advogados. O juiz do processo tem uma posição supra- interesses e deve atuar em consciência. Quando o MP pede alguma coisa ao juiz, o juiz umas vezes diz que sim e outras diz que não. Com os advogados, é igual. E umas vezes perde-se melhor, outras pior. Ou seja, há bom perder e mau perder. Se as pessoas ficam incomodadas, é a vida. Também não me pareceu correto, e a Associação dos Juízes reagiu a isso, que numa situação como esta do processo da Madeira a comunicação da PGR apontasse a pistola ao juiz dizendo: a culpa foi daquele senhor. Porque ainda não sabemos com todos os pormenores porque houve a demora dos 21 dias e se os indícios do MP são sustentados ou não. O MP, legitimamente, entende que sim. Legitimamente, o juiz entendeu que não. Legitimamente, a Relação vai decidir.

Em novembro, após a demissão de António Costa na sequência da Operação Influencer, disse que era ‘excessivo e prematuro pendurar o MP no pelourinho’. Desta vez considerou que, pelo alarme público provocado, que a PGR deveria vir à liça e tranquilizar os portugueses. O que é que mudou?

A PGR deve, quando os casos suscitam alarme, esclarecer o que se passou dentro do que lhe é possível. Agora fez e, a meu ver, bem. O comunicado da PGR tinha um aspeto muito importante, que o poder político e os comentadores ou não leram ou fingiram que não leram: resulta claro do comunicado que a hierarquia funcionou e que o trabalho em equipa funcionou. Ou seja, não se pode dizer que esta operação foi feita por um procurador isolado que se lembrou num dia qualquer de telefonar à PJ e dizer ‘vamos lá com 100 pessoas incomodar aqueles senhores’. Isso não foi assim. Houve uma equipa de trabalho que reportou à hierarquia do DCIAP e o DCIAP comunicou com a PGR. E isto oferece segurança ao cidadão.

Mas o comunicado da Associação Sindical dos juízes de há dois dias foi uma resposta ao Comunicado da PGR?

Porque o comunicado sugere que os 21 dias que os arguidos estiveram a ser ouvidos são todos imputáveis à lentidão do juiz parece-me excessivo. Acha que algum vez, para além desta, este juiz esteve 21 dias a fazer um interrogatório? Que eu saiba não. Houve um advogado de um arguido que veio dizer para a televisão que durante a primeira semana houve uns dias que estiveram a corrigir lapsos do despacho do MP, depois estiveram a introduzir documentos aos bocadinhos porque ainda não tinham chegado todos. E o juiz entendeu, e a meu ver bem, que os documentos tinham de estar todos no processo. Portanto, acho que foi imprudente vir dizer nestas circunstâncias que a culpa é toda do juiz. Também se disse que as procuradoras, mais do que uma vez, pediram ao juiz para acelerar o processo. E houve um advogado que veio dizer que as senhoras procuradoras não queriam com isso libertar os presos, queriam que o juiz fosse mais rápido para prender os presos. Ou seja, o comunicado parece passar a ideia de que o MP estava muito preocupado com a detenção das pessoas, queria que a detenção fosse confirmada e transformada numa prisão preventiva e o juiz entendeu que não havia fundamento para isso. Considero que quem discorda das decisões não precisa de dar pontapés ao juiz. Pode atacá-las no tribunal.

Está a terminar o seu mandato à frente da ASJP. O segundo e último, certo?

Sim.

Presidiu à associação nos últimos 6 anos (desde 2018), igualando o ‘recorde’ de António Martins. Em 16 presidentes na história da ASJP, só os dois estiveram tanto tempo no lugar. Curiosamente, ambos em épocas de Governos socialistas, com ‘adversidades’ conjunturais semelhantes (António Martins nos Executivos de Sócrates e o senhor nos de António Costa). Que balanço faz? Conseguiu mudar alguma coisa? Pelo meio teve a mais longa greve de juízes de sempre (21 dias). Quando o António Martins foi presidente, de 2006 a 2012, eu era o secretário-geral dele. Portanto, não só fomos os dois que estivemos mais tempo isoladamente como em conjunto. E, é verdade, em 2006 tomamos posse com um ambiente político e um discursivo muito adverso do então primeiro-ministro José Sócrates. Tinha acabado de haver uma greve decretada por uma direção anterior e havia uma ação política claramente virada para descredibilizar a Justiça. Isso existiu. Não vi isso neste Governo.

As pessoas também aprendem e ficam escaldadas.

E neste Governo que está agora a cessar funções houve umas coisas melhor aqui, outras pior ali, mas tivemos sempre uma relação boa, institucionalmente correta. Não consigo dizer que houve uma ação do Governo contrária aos interesses da Justiça.

Nem contrária nem a favor. Porque quando surgem estes casos mais mediáticos aparecem logo os comentadores do costume e elementos do PS também a falar de uma reforma da Justiça. Esquecem-se que é precisamente do lado da Justiça que há anos têm partido as propostas para a reforma da Justiça que agora se refletem, aqui e ali, nas propostas eleitorais dos partidos.

É porque acharam que as nossas propostas não são boas! Ou então não querem fazer reformas. Qualquer destas duas alternativas é legítima. O Governo, ou o PS, pode dizer que acham que é importante uma reforma, mas que não é a que nós propomos e têm outra melhor. Perfeito. Ou têm outra alternativa e dizem que não querem reformar nada porque não há nenhuma crise na Justiça que justifique uma necessidade de pensar numa reforma. O que não se pode fazer é duas coisas contraditórias: é dizer que há crise e depois, nos momentos em que é preciso mudar alguma coisa, saírem da sala e dizerem que não querem discutir. E aí a Felícia tem razão, o segundo Governo que terminou prematuramente tinha todas as condições políticas, nenhum governo teve essas condições e acredito que nenhum voltará a ter. Tinha as profissões a proporem reformas e abertas para a discussão, tinha uma maioria absoluta e não sei quantos milhões de euros do PRR para gastar. Mas não fez.

Mas então nesses seus dois mandatos, alguma coisa mudou na Justiça?

Entre 2006 e 2024, houve muita coisa que mudou. Nessa altura, tínhamos cerca de um milhão e quinhentos mil processos e agora temos 600 mil; tínhamos tempos de resposta nas ações cível e processos-crime, médios, muito mais demorados do que os de hoje; os tribunais não estavam organizados como estão agora, com cumprimentos de metas, objetivos, com maior controlo e maior verificação, isso não existia.

Mas esse esforço partiu de quem?

É do país! Também não existiam tantas investigações criminais, tantos processos sobre corrupção, tantas pessoas condenadas. A Justiça mudou bastante. Há dificuldades que persistem: os megaprocessos (e nunca mais se encontra uma solução para isso…), a justiça administrativa e fiscal, o excesso de preço da Justiça (as pessoas que, sendo remediadas, mesmo da classe média, não conseguem aceder à Justiça porque é demasiado cara). Essas coisas persistem e tardam a ser resolvidas. Ou seja, não podemos dizer, com franqueza, que esteja tudo na mesma e que esteja tudo mal.

Agora que vai ficar disponível, começa-se a falar do seu futuro e há quem o deseje ver como novo PGR. Caía-lhe bem esse fato?

Eu disse no último congresso dos juízes que tinha um plano para abril deste ano: desaparecer. E o meu plano é esse. Não fisicamente, espero, mas eu quero desaparecer. Quero voltar para a minha vida pessoal e profissional porque sou juiz. Já ouvi essa conversa, não faço ideia que fundamento tem, mas, se alguém tiver essa ideia na cabeça, é melhor tirá-la já e não vir cá bater à porta. Portanto, sou completamente ‘recrutável’ para o que quer que seja.

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Só houve uma condenação por corrupção em 2022

Dados revelam que é o crime mais investigado entre titulares de cargos públicos. Metade dos processos é arquivada

P18

Só houve uma condenação por corrupção em 2022

Rui Gustavo

rgustavo@expresso.impresa.pt

Crime Dados revelam que apesar de a corrupção ser o crime mais investigado entre titulares de cargos públicos, as condenações são raras

Três examinadores da Associação Portuguesa de Escolas de Condução foram condenados por corrupção. De acordo com uma fonte judicial, recebiam subornos para aprovarem candidatos à obtenção de uma carta de condução. Mesmo sem estarem envolvidos em alta criminalidade, estes três arguidos são protagonistas de um caso raro: é a única condenação por corrupção de titulares de cargos públicos no ano de 2022. Como desempenham uma função do Estado, entram na estatística do Conselho de Prevenção da Corrupção que revela a real dimensão da criminalidade económico-financeira dentro do Estado e dos seus servidores.

E segundo o último relatório disponível — referente a 2002 — houve oito condenações em tribunal de titulares de cargos públicos por crimes económico-financeiros como corrupção, prevaricação ou abuso de poder, entre outros. Os números referem-se a acórdãos condenatórios e podem envolver mais do que uma pessoa, como é o caso dos examinadores. Nesse mesmo ano, houve um total de 57 acusações do Ministério Público (MP), 310 arquivamentos e foram instaurados 168 inquéritos. Como os dados são todos do mesmo ano, não se podem relacionar entre si. Isto é, não se pode concluir que das 57 acusações, resultaram apenas oito condenações.

Ainda assim, os autores do estudo admitem que há uma grande taxa de arquivamento neste tipo de crimes e que “os elementos apresentados evidenciam uma vez mais as dificuldades da ação do MP e dos órgãos de Polícia Criminal no acesso e recolha de indícios e elementos probatórios relativamente a este tipo de crime”.

Nos últimos cinco anos, entre 2018 e 2022, houve um total de 1180 inquéritos por crimes económicos que resultaram em 397 acusações e 61 acórdãos condenatórios. A relação entre acusações e condenações é anormalmente baixa (na criminalidade em geral o MP consegue condenações em 80% dos casos) e isso é explicado, em parte pela origem das denúncias: cerca de metade são anónimas. “Esta leitura sobre a relação entre denúncias anónimas e despachos de arquivamento sustenta-se igualmente no facto de o anonimato possibilitar o refúgio para a apresentação de suspeitas infundadas (…) e também porque, por outro lado, a denúncia anónima impede que a investigação criminal possa estabelecer e aprofundar, de modo mais informado e direcionado, as pistas de investigação mais adequadas e facilitadoras do acesso aos indícios e aos elementos probatórios dos factos denunciados”, reflete o estudo do Conselho que entretanto foi substituído pelo Mecanismo Nacional Anticorrupção. Por isso, apesar de a corrupção ser o crime mais investigado — quase metade dos casos reportados —, as condenações são muito raras.

E os políticos? Há partidos como o Chega que fazem da luta contra a corrupção uma bandeira política, mas a verdade é que no que concerne aos políticos não há dados que permitam concluir que este crime está instalado na administração central. De acordo com os dados de 2022, a maior parte dos casos em que as autoridades conseguem reunir provas estão relacionados com o poder local e com as câmaras municipais. O estudo justifica este facto com a “proximidade” das pessoas com os “serviços — leia-se funcionários” e a “natureza das funções que desenvolvem” muito ligada aos problemas do dia a dia.

No caso da administração central, o MP conseguiu indícios suficientes para acusar em 31 casos. Metade destes estão relacionados com as forças de segurança e dois com o Governo. Num dos casos foi acusada uma funcionária do Ministério da Economia que terá ajudado uma entidade a conseguir uma decisão favorável e o outro caso é o de um deputado suspeito de receber indevidamente ajudas de custo relacionadas com deslocações.

Mas a justiça quer dar uma imagem implacável. Quando condenou Armando Vara por crimes de branqueamento que não estavam relacionados com o tempo em que o ex-ministro esteve no Governo, o juiz Rui Coelho justificou o facto de não ter suspendido a execução da pena de dois anos com o argumento de que o “arguido exerceu as mais altas funções públicas, contribuiu para a condução dos destinos no país e tinha o dever moral de agir de uma forma diferente”. Vara já tinha sido condenado no processo Face Oculta e acabou por passar cinco anos preso.

José Penedos é um dos poucos casos de um político condenado por corrupção. O antigo governante (foi secretário de Estado da Energia de um Governo socialista) apanhou três anos de prisão no processo Face Oculta por factos relacionados com o tempo em que foi administrador da REN. Entregou-se na cadeia de Coimbra em dezembro de 2020. Tinha 75 anos, demência, e passou quatro meses preso numa cela comum até ser libertado por razões humanitárias.

ESTUDO REVELA QUE O MINISTÉRIO PÚBLICO E A POLÍCIA TÊM “DIFICULDADES” NA INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO

A MAIORIA DAS QUEIXAS SÃO DE FONTE ANÓNIMA, O QUE EXPLICA, EM PARTE, O GRANDE VOLUME DE ARQUIVAMENTOS

A última versão do estatuto do Ministério Público é de 2020.

As negociações duraram seis anos

NÚMEROS

22

foi o número de condenações por corrupção de titulares de cargos públicos em cinco anos; no total, houve 61 condenações por crimes financeiros

73

foi o número de acusações do MP por este tipo de crime entre 2018 e 2022; 605 queixas foram arquivadas sem ter havido acusação

É preciso mudar alguma coisa na Justiça?

Na ressaca das duas maiores operações policiais que visaram António Costa e Miguel Albuquerque, o Ministério Público é o principal alvo do PS e AD

No princípio, era um elefante no meio da sala. Foi por causa dela que o Governo caiu, mas nos primeiros debates entre os candidatos a primeiro-ministro a Justiça esteve ausente das discussões, já depois de ter sido quase ignorada nos programas eleitorais dos principais partidos. Nos últimos dias, o tema voltou a ganhar força. O PS, debaixo de fogo na Operação Influencer, diz que é preciso “clarificar” a hierarquia da Procuradoria-Geral da República (PGR); já o PSD quer uma clarificação da “posição constitucional do Ministério Público”. Mas afinal, é ou não preciso mudar alguma coisa?

Adão Carvalho, presidente do Sindicato do Ministério Público, nota que os programas dos partidos do arco da governação “não” vão “ao encontro daquilo que são as principais dificuldades com que o sistema de justiça se depara: a degradação das instalações e equipamentos do parque judiciário e a falta de funcionários judiciais”. E confessa “preocupação” com o facto de PS e AD fazerem “referência” à “necessidade de clarificar as formas de coordenação e os poderes hierárquicos da PGR no âmbito dos inquéritos”. Este magistrado refere-se a uma diretiva que permite a um superior hierárquico do Ministério Público (MP) poder obrigar um procurador a cumprir uma determinada ordem com a qual não esteja de acordo. Esta questão está a ser dirimida nos tribunais e, na verdade, é como se não existisse.

Para Manuel Soares, da Associação Sindical dos Juízes, esta “dúvida não é positiva” e “para clarificar aspetos como esse” parece-lhe “que se justifica uma intervenção legislativa”. Mas, mesmo assim, “está por demonstrar que nos casos recentes que geraram tanto sobressalto a hierarquia e coordenação não funcionaram e que, se tivessem funcionado de outra maneira, as decisões do MP teriam sido diferentes”.

Quando a Operação Influencer rebentou, em novembro do ano passado, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, acrescentou um parágrafo ao comunicado oficial em que eram referidas suspeitas contra o ainda primeiro-ministro, António Costa, que considerou não ter condições para continuar no cargo. O caso que envolve o governante está a ser investigado no Supremo Tribunal de Justiça e os indícios recolhidos pelo MP foram considerados “vagos” e até “contraditórios” pelo juiz de instrução do processo, Nuno Dias Costa.

Já depois da demissão de António Costa, a PJ e o MP lançaram uma grande operação na Madeira por suspeitas de corrupção envolvendo o presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e dois empresários que foram libertados pelo juiz Jorge Bernardes de Melo que considerou não haver qualquer indício da prática de qualquer crime. O presidente do governo regional, também suspeito, demitiu-se do cargo mas ainda não foi ouvido.

No debate de todos contra todos, na sexta-feira da semana passada, Pedro Nuno Santos, candidato do PS, frisou que algo não está bem no MP quan-ILUSTRAÇÃO TIAGO PEREIRA SANTOS COM FREEPIK

do as investigações que são depois desvalorizadas pelos juízes levam à queda de governos. Alguma coisa tem de mudar.

Mas para Adão Carvalho, “o estatuto do Ministério Público foi objeto de revisão, num longo processo iniciado em 2014 e que só terminou com a sua entrada em vigor em 2020” e “foi encontrado um equilíbrio adequado sobre o exercício dos poderes hierárquicos dentro do MP e no processo penal”. Ou seja, são precisas mais alterações, quatro anos depois de o estatuto do MP ter sido mudado? “A independência do sistema judicial depende da independência do MP e ela só é assegurada se além da autonomia em relação ao poder executivo for assegurado um grau elevado de autonomia de cada magistrado ou equipa de magistrados no processo de decisão”, insiste Adão Carvalho, que tem combatido a polémica diretiva em tribunal.

As outras mudanças propostas pelos dois partidos “vão atrás da pressão social sem qualquer razoabilidade”, critica Manuel Soares. “Por exemplo, que sentido faz vários partidos persistirem na ideia de criminalizar o enriquecimento ilícito para combater a corrupção, quando o Tribunal Constitucional já disse duas vezes que não é possível e quando há dois anos aprovaram por unanimidade a criminalização da ocultação intencional de património?”

O que dizem os programas dos partidos sobre a justiça?

Há um aparente consenso entre os programas partidários sobre a necessidade de existência de uma reforma do sistema de justiça. O PS diz querer “clarificar” as formas de coordenação e os poderes hierárquicos da PGR no âmbito dos inquéritos, “garantindo uniformização de procedimentos, a celeridade na investigação criminal, a satisfação dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos e o efetivo exercício dos poderes hierárquicos quando necessário, sem prejuízo da responsabilidade individual de cada magistrado”. Pedro Nuno Santos garante igualmente que, se for eleito, vai rever as regras sobre conexão de processos, assim evitando os “megaprocessos”, relativamente aos quais a morosidade se coloca de forma particularmente grave. E defende o reforço do papel do Conselho Consultivo da Justiça, como forma de “melhorar o diálogo entre todos os atores”.

A AD usa o mesmo verbo do PS e promete igualmente “clarificar” a posição constitucional do MP “como uma magistratura, autónoma, hierarquizada, independente do poder executivo”. Outra proposta é a de alterar a Constituição para, entre outras matérias, “clarificar o estatuto de todos os juízes, a sua forma de designação, duração dos mandatos e garantias de inamovibilidade”.

A AD quer fixar no Código do Processo Penal o limite máximo de 72 horas para decisão jurisdicional após detenção, permitindo a intervenção de mais do que um juiz no processo, para tal efeito. No último debate televisivo, Luís Montenegro fez menção ao referido limite de 72 horas. E no debate na rádio de segunda-feira passada, disse que o balanço do mandato de Lucília Gago “merece uma nota mais negativa do que positiva” uma vez que o MP tem “visto as suas conclusões contrariadas por decisões de juízes”.

Já o Chega quer introduzir a prisão perpétua com possibilidade de revisão “depois de cumprida uma par-GUIA DOS CRIMES ECONÓMICOS-FINANCEIROS

CORRUPÇÃO

É o crime mais grave — punível com oito anos de prisão — e mais difícil de provar. Só funcionários ou titulares de cargos políticos podem ser acusados de corrupção passiva, que implica receber um suborno para praticar um ato lícito ou ilícito. Na Operação Marquês, tanto o ex-primeiroministro, José Sócrates, que chegou a estar preso; e Armando Vara, que já foi condenado duas vezes, estão pronunciados por este crime. O processo já tem dez anos, mas o julgamento ainda nem sequer está marcado.

PECULATO

Uso de um bem público em proveito próprio. O presidente da Câmara de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, foi condenado recentemente a uma multa e a perda de mandato por ter usado na vida pessoal um carro elétrico da autarquia.

PREVARICAÇÃO

Acontece quando alguém vai contra os deveres da função num caso específico. Há duas semanas, o ex-secretário de Estado Miguel Alves — que se demitiu quando foi acusado — foi absolvido num processo de prevaricação. Era suspeito de ter cometido este crime na contratação dos serviços de assessoria da Câmara Municipal de Caminha. O próprio António Costa será suspeito deste crime no Operação Influencer.

RECEBIMENTO INDEVIDO DE VANTAGEM

Alguém recebe uma oferta que não lhe é devida, mas não tem de haver a demonstração de ter praticado um ato em troca. É um dos crimes que o juiz de instrução da Operação Influencer admite que possa ter sido praticado por João Galamba quando aceitou convites para jantar por parte de empresários da Start Campus.

TRÁFICO DE INFLUÊNCIAS

Ocorre quando um suspeito, a troco de uma vantagem que não lhe é devida, usa da influência que tem junto de uma entidade pública para obter um ato ilícito. O Ministério Público entende que terá sido este o crime cometido por Lacerda Machado na Operação Influencer. Armando Vara cumpriu pena de prisão efetiva por este crime. R.G.

te da pena” e promete o reforço dos poderes, meios e formação no combate ao crime económico-financeiro e organizado, o avanço na delação premiada ou a reforma do sistema de apreensão, confisco e devolução ao Estado (e eventuais lesados) do produto do crime económico-financeiro.

A IL defende o ingresso direto na magistratura a “juristas de mérito reconhecido” ou uma “justiça administrativa mais rápida, através de maior recurso à arbitragem administrativa”, enquanto o BE quer a criminalização do enriquecimento ilícito (com o confisco dos bens e a taxação a 100%), bem como do recurso a serviços de entidades offshore e a fiscalização efetiva do património e dos rendimentos dos titulares de cargos públicos, “alargando a obrigatoriedade de declaração até gabinetes ministeriais”.

Por sua vez, a CDU quer a adoção de medidas que “atenuem a morosidade da justiça, como a criação de estruturas de apoio e assessoria aos magistrados”, propondo ainda “libertar” os órgãos de polícia criminal e o Ministério Público “de bagatelas penais injustificadas”.

Por fim, o PAN salienta o combate ao fenómeno das “portas giratórias” por via da previsão de períodos de nojo de três anos e quer o reforço de meios humanos para combate à corrupção e criminalidade económico-financeira. H.F. e R.G.

Vespas Club terá sido centro de lavagem de dinheiro

Investigadores acreditam que discoteca do Funchal em cuja sede encontraram €500 mil era controlada por Pedro Calado

A mais antiga e famosa discoteca do Funchal, o Vespas Club, foi alegadamente usada durante anos como uma plataforma giratória para fazer circular dinheiro vivo entre empresários e políticos na ilha da Madeira.

Essa é uma das linhas de investigação seguida pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária nos três inquéritos-crime sobre a corrupção na Madeira que têm estado a ser conduzidos por três procuradoras do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), depois de terem sido descobertos meio milhão de euros em dinheiro vivo na casa do dono e gerente daquela discoteca durante a megaoperação de buscas feita na região a 24 de janeiro.

Para o MP, o dinheiro encontrado nessa casa — que é também a sede formal da empresa das Vespas, como é conhecida

Segundo o MP, o Vespas Club serviu para lavar dinheiro de diversas origens e com diversas finalidades

a discoteca — serviu para lavar dinheiro de diversas origens e com diversas finalidades. “A grande quantidade de notas apreendidas indicia que os suspeitos faziam uma grande circulação de dinheiro vivo para fugirem ao Fisco e fazerem pagamentos rápidos. Uma espécie de saco azul”, diz uma fonte próxima do processo. Segundo a investigação, esse dinheiro estará ligado a Pedro Calado, ex-presidente da Câmara do Funchal e antigo vice-presidente do Governo Regional da Madeira. Calado tem sido desde 2016 copiloto de ralis na Team Vespas, equipa que representa a discoteca em competições.

Um conjunto de elementos recolhidos durante a investigação criminal diz respeito ao modo como o autarca foi acumulando patrocínios para o rali, alegadamente a troco de beneficiar as empresas patrocinadoras em contratos públicos com o município ou com a região autónoma.

Nas buscas a uma das firmas que deram dinheiro nos últimos anos para o carro de ralis do antigo número dois de Miguel Albuquerque, a Acin — iCloud Solutions, a Polícia Judiciária encontrou um dos sócios-gerentes no local disponível para prestar declarações. Tolentino Pereira contou aos inspetores que Calado e o seu piloto, Alexandre Camacho, têm o controlo efetivo das Vespas.

Nessa visita da polícia, Tolentino explicou que apesar de a sua empresa contribuir para a equipa de ralis, nunca foi feito qualquer contrato de patrocínio ou publicidade, sendo o dinheiro canalizado para as firmas que Calado e Camacho indicassem. O empresário disse que em 2023 foram pagos 17.500 euros. Além disso, em outubro de 2020, a Acin acabou por contratar Camacho como funcionário da sua empresa. Desde que a Acin começou a patrocinar o Team Vespas, em 2017, a empresa ganhou 1,8 milhões de euros em contratos públicos na região autónoma da Madeira.

Nem Tolentino Pereira nem Alexandre Camacho foram ainda inquiridos formalmente como testemunhas pelo MP. Pedro Calado já foi interrogado no início de fevereiro, quando esteve detido em Lisboa, mas não chegou a ser confrontado pelas procuradoras sobre este assunto. Depois de ter respondido às perguntas do juiz de instrução Jorge Bernardes de Melo, o ex-presidente da Câmara do Funchal não quis responder a mais questões.

Envelopes num cofre

O meio milhão de euros encontrado na sede formal das Vespas estava distribuído por 13 envelopes num cofre embutido na parede de um quarto. No cofre estava também uma folha onde o gerente da discoteca apontou o valor exato ali guardado: 499.200 euros. Os envelopes estavam, por outro lado, referenciados com títulos enigmáticos, escritos à mão: “let the sunshine in”, “good, very well than you”, “o generoso”, “o generoso B” ou “what a smile”.

No entanto, não será fácil provar para quem em concreto se destinava o conteúdo valioso dos envelopes. E o juiz de instrução do caso não deu importância às elevadas quantidades em numerário encontradas pelos inspetores durante a megaoperação na Madeira.

A investigação permitiu, entretanto, apurar que Pedro Calado tinha como hábito fazer pagamentos regulares em dinheiro vivo, incluindo suplementos de salário, à sua secretária e ao seu motorista na Câmara. Essas rotinas de pagamento estão, alegadamente, relacionadas com o fluxo de dinheiro que circulava pelas Vespas.

Hugo Franco e Micael Pereira

hfranco@expresso.impresa.pt

O Vespas Club (Funchal) foi alegadamente usado para fazer circular dinheiro entre empresários e políticos FOTO D.R.

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FOTO RODRIGO ANTUNES/LUSA

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