20-12-2018  | dn.pt

Deputados vão apreciar petição de adeptos do Sporting que protesta contra declarações do PR, do presidente da AR e do PM e acusa atual presidente do clube de se gabar de “ter juízes”.


“Solicitam alterações legislativas, designadamente em matéria de imparcialidade e independência dos magistrados judiciais, na sequência de recentes acontecimentos em clube de futebol português.”

A sóbria súmula, efetuada pelos serviços da Assembleia da República, da petição nº558/XIII/4ª, admitida a 5 de dezembro na Comissão de assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, está longe de fazer justiça ao documento. De facto, nas seis barrocas páginas da respetiva exposição de motivos o tom é irónico, por vezes provocatório, outras sarcástico, incluindo lições de ortografia e erudição e até referência à vida privada de um magistrado.

“Foi admitida a nossa Petição de Outubro ao Parlamento. (…) Sou optimista quanto ao resultado. A poltranice não vai vencer-nos. Embora lhes pareça que sim.”

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Com 4450 assinaturas, o documento é como oriundo de “um grupo de adeptos e associados do Sporting Club de Portugal”, “indignados com os últimos acontecimentos que têm ocorrido no futebol português e apreensivos com os enquadramentos sustentados pelas estruturas jurisdicionais a quem incumbe o exame de tais casos.”

Entre os signatários está José Preto, advogado de Bruno de Carvalho, que a 16 de dezembro escreveu no seu Facebook: “Foi admitida a nossa Petição de Outubro ao Parlamento. (…) Sou optimista quanto ao resultado. A poltranice não vai vencer-nos. Embora lhes pareça que sim.”

Começando por garantir que a mancha causada pelo ataque a Alcochete “nunca será apagada da memória dos sportinguistas” e que querem que justiça seja feita, os peticionários consideram no entanto que ela não será possível “sem um debate atento na Assembleia da República que examine designadamente as condições materiais e formais da imparcialidade dos tribunais e da independência dos seus magistrados.”

Varandas “tem juízes”?

E, para auxiliar nisso os deputados, após sugerir ao Presidente da República, ao presidente da Assembleia da República e ao primeiro-ministro que “corrijam as declarações prestadas” (a propósito de Alcochete) e “generalizadamente interpretadas como tomada de posição apta a influenciar o curso dos processos jurisdicionais instaurados ou a instaurar e de o fazerem em desfavor da Direção à data em funções do Sporting Clube de Portugal”, o documento dá exemplos, começando por citar o atual presidente do clube, Frederico Varandas, como tendo-se gabado de “ter juízes da República”.

“Na pretendida campanha eleitoral para pretendida eleição para os atuais pretendidos titulares das funções dos corpos sociais, o candidato à presidência da direção disse em público:”Tenho na minha lista (…) dois juízes que são conselheiros do Supremo, um Procurador da República, um Juiz-Desembargador. Acha que estas pessoas não vão (…) fazer braço de ferro na justiça, no Sporting?”E o texto comenta:”Tudo indica que sim, e isso preocupa os subscritores.”

“Na pretendida campanha eleitoral para pretendida eleição para os atuais pretendidos titulares das funções dos corpos sociais, o candidato à presidência da direção disse em público:”Tenho na minha lista (…) dois juízes que são conselheiros do Supremo, um Procurador da República, um Juiz-Desembargador. Acha que estas pessoas não vão (…) fazer braço de ferro na justiça, no Sporting?”

Os juízes em causa são Tomé Carvalho, juiz desembargador (da Relação de Évora), secretário da mesa da Assembleia Geral do clube; Baltazar Pinto, juiz conselheiro jubilado (do Supremo Tribunal de Justiça) e atual presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar, onde está também, como suplente, outro conselheiro jubilado, Gabriel Catarino – que tem estado ativo como inspetor judicial (é quem está a instruir o processo disciplinar do juiz da Relação do Porto, Neto Moura, autor do acórdão que ficou conhecido como “da mulher adúltera”). Quanto ao magistrado do Ministério Público em causa, é João Palma, ex presidente do Sindicato dos Magistrados do MP e que ocupa o posto de vice-presidente da mesa da Assembleia-Geral.

Mencionando, de passagem, o facto de um dos juízes em causa “viver maritalmente” com uma juíza – não sendo o relevo desta informação explicitado – e de o Conselho Superior de Magistratura ter anunciado “o exame da questão” (anúncio feito em setembro, precisamente na sequência da inclusão de magistrados na direção de Frederico Varandas) sem no entanto chegar a uma conclusão que agrade aos peticionários, admoesta-se o órgão disciplinar dos juízes por não ter “noção exata do grau de exigência (…) que reveste a questão do respeito e salvaguarda do dever de discrição em cujos termos o magistrado judicial não deve nem fazer perigar a imagem pública da sua própria independência e imparcialidade, nem fazer perigar a imagem do tribunal em que se insere.”

Proibir juízes em clubes e suspender os que lá estão

E dá-se um exemplo daquilo que se considera um “exemplo cabal de intrusão e grosseria” na “intervenção pública espectável [ou seja,”digna de se ver”,”notável”] de um magistrado judicial”, citando o desembargador jubilado Sérgio Abrantes Mendes (que foi candidato à liderança do Sporting, desempenhou a função de presidente da respetiva mesa da Assembleia Geral e também a de Provedor para a Ética no Desporto) num programa da SIC “dedicado ao debate público do requerimento e efeitos da citação da providência cautelar de suspensão da deliberação social do Sporting de 23 de junho”.

Nessa ocasião, o referido juiz ter-se-ia referido à magistrada que estava a decidir o caso, para dizer: “devia ter indeferido [recusado] liminarmente o requerimento”, adiantando, ainda segundo a exposição de motivos da petição, que “se tivesse sido com ele teria exigido a identificação profissional ao advogado subscritor porque o texto (nunca publicado) o fazia duvidar dessa qualidade.”

Intoleráveis “intrusão e censura da juiz de primeira instância” e “ataque pessoal a advogado em razão de ato de exercício profissional”, asseveram os peticionários, certificando que “magistrados não podem dispor de autorização” para tais “condutas abusivas” – mas que “não há notícia da reação do órgão de gestão e disciplina da judicatura” (ou seja, o CSM).

Peticionários querem que “os magistrados que já tenham por imprevidência ou entusiasmo comprometido a discrição necessária”, ou seja, estejam nos corpos dirigentes de clubes, saiam de imediato. Mas não só: deve haver inibição “de funções jurisdicionais dos que tenham entretanto comprometido a discrição à qual se encontram vinculados, na proporção necessária a assegurar a tranquilidade das discussões processuais.”

Concluem pois que é necessário “proibir por norma geral” a “presença de magistrados nas direções de clubes desportivos, ou nas estruturas federativas – fora dos casos concretos de requerimento ao Conselho Superior para a nomeação de magistrados jubilados em ordem à conclusão decisória de solução arbitral concreta.”

E quanto “aos magistrados que já tenham por imprevidência ou entusiasmo comprometido a discrição necessária, importa não apenas que tal situação cesse imediatamente, como importa a garantia de que não interferirão, direta ou indiretamente, em qualquer situação processual, designadamente pela eventual influência de opinião, parecer ou relatório inspetivo quanto à pessoa de magistrados a quem estejam ou tenham sido confiados interesses opostos àqueles cuja representação protagonizaram.”

O que significa, estabelece-se no ponto dois dos pedidos, “a situação de inibição de funções jurisdicionais dos que tenham entretanto comprometido a discrição à qual se encontram vinculados, na proporção necessária a assegurar a tranquilidade das discussões processuais.” Ou seja, aparentemente a petição quer a suspensão de funções – nos tribunais – de magistrados que tenham aceitado participar na direção de clubes.

A petição chama ainda a atenção para o facto de que “no Estatuto dos Magistrados do Ministério Público não estão formuladas quaisquer exigências de natureza deontológica, definindo-se este corpo, funcionalmente, pela isenção de quaisquer deveres de sintonia, representação, resposta e fidelidade à consciência pública dos valores ético-políticos da sociedade democrática, o que não significa pequeno risco, nem traduz pequena anomalia, sobretudo por serem visíveis os efeitos práticos correspondentes.”

Parlamento pode proibir?

Esta iniciativa dá entrada no parlamento quando este discute propostas de revisão dos estatutos dos juízes e dos procuradores. Todas preveem que os magistrados passem a precisar de pedir autorização aos respetivos conselhos para integrar órgãos sociais de clubes profissionais. A proposta do governo, que já foi aprovada na generalidade, obriga a que “o exercício de funções não-profissionais em quaisquer órgãos estatutários de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais” por juízes necessite de autorização prévia do Conselho Superior de Magistratura.

Também na proposta de revisão do estatuto que rege os magistrados do Ministério Público se requer autorização prévia do Conselho Superior de Magistrados do MP, determinando-se que esta “apenas é concedida se o exercício das funções não for remunerado e não envolver prejuízo para o serviço ou para a independência, dignidade e prestígio da função de magistrado do Ministério Público”.

Nenhuma das propostas em discussão no parlamento prevê a proibição liminar ou consequências para os magistrados que tenham aceitado já desempenhar cargos em clubes. A proibição aliás poderá estar vedada por o Tribunal Constitucional ter considerado inconstitucional a norma do Estatuto dos Magistrados. introduzida em 1993, que impedia a participação de juízes em órgãos diretivos de clubes de futebol profissional.

Nenhuma das propostas, no entanto, prevê a proibição liminar ou consequências para os magistrados que tenham aceitado já desempenhar cargos em clubes. O que poderá estar vedado, já que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a norma do Estatuto dos Magistrados que impedia a participação de juízes em órgãos diretivos de clubes de futebol profissional e que resultara de uma deliberação de 1993 do Conselho Superior de Magistratura.

Afirmando não perceber a posição do TC, o atual presidente da Associação Sindical de Juízes, Manuel Soares, considera não obstante que “a partir daí ficou claro que o CSM não podia impedir a participação de juízes no futebol.”

Mas, prossegue este juiz desembargador da Relação do Porto num artigo de opinião no

Público a 29 de agosto, “mesmo assim, em deliberações de 2005, 2006 e 2008, à falta de melhor instrumento legal, o CSM não deixou de vincar o seu desagrado e de desaconselhar essas atuações.”

O mesmo, vinca, fizeram os juízes, tendo em 2008 aprovado um “compromisso ético” no qual se lê: “A participação em atividades cívicas externas às funções do juiz, mesmo que não haja objetivamente risco para a sua imparcialidade, é rejeitada em todos os casos em que seja razoavelmente de prever que implica sujeição a apreciações públicas vexatórias e pouco dignificantes. Será normalmente o caso da participação em órgãos associativos ligados aos desportos profissionais, onde, por via do seu contexto emocional específico e pelo tipo de linguagem utilizada e controvérsias que aí se desenvolvem, facilmente o juiz se sujeita a referências desprestigiantes e é conotado com situações pouco transparentes.””

“A participação em atividades cívicas externas às funções do juiz, mesmo que não haja objetivamente risco para a sua imparcialidade, é rejeitada em todos os casos em que seja razoavelmente de prever que implica sujeição a apreciações públicas vexatórias e pouco dignificantes. Será normalmente o caso da participação em órgãos associativos ligados aos desportos profissionais.”

Lamenta Manuel Soares: “Apesar deste historial de desconfiança e censura informal, com quase 30 anos, a verdade é que não foi possível evitar a participação de vários juízes nos órgãos do futebol profissional. Trata-se, claro, de uma questão da consciência ética de cada um e não de violação da lei. Contudo, não pode deixar de causar apreensão a persistência de atuações individuais contra o sentimento generalizado dos juízes sobre o que está certo e o que está errado.”

Concluindo tratar-se de um “problema sério”, que “tem que ver com os princípios constitucionais relativos às incompatibilidades dos juízes, que são instrumentais da perceção social sobre independência e imparcialidade da Justiça”, o juiz congratula-se com a previsível alteração da lei.

“Tomada fraudulenta” de clube “deve ser crime”

A petição, porém, não se fica pelo tema da participação de juízes na direção de clubes. Pede ainda “reformulação do crime contra a verdade desportiva [Lei n.º 50/2007, de 31 de Agosto – Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos] de molde a incluir no respetivo tipo a tomada fraudulenta dos corpos sociais de qualquer clube” (implicando que os signatários consideram, como aliás resulta do facto de a apelidarem de “pretendida”, que a direção do Sporting em funções é ilegítima) e “a prática intrusiva de recolha de informações, com violação do segredo de justiça ou apenas com violação da proteção de dados pessoais, por modo apto à prospeção de quaisquer utilidades ou vantagens na relação de competição desportiva” (estando aqui em causa o processo e-Toupeira).

O documento solicita ainda a alteração do artigo 1200 do Código de Processo Civil, “de molde a nele incluir a violação do dever de discrição.” Em causa está “alterar a formulação das suspeições no Processo Civil e no Processo Administrativo de molde a garantir uma defesa legal da imparcialidade que não faça dos tribunais europeus os únicos garantes e únicas esperanças dos cidadãos portugueses quanto à defesa da função de julgar.”

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